quarta-feira, 23 de setembro de 2020

À mercê do vento

 

    

    Sou jovem, mas meu espírito é de um senhor de oitenta anos. Cá em casa, desde que tomei consciência da minha existência, usamos objetos antigos, objetos de épocas passadas, objetos esquecidos e quiçá desprezados pelas criaturas orgulhosas em serem modernas. Uma máquina de escrever fabricada nos Estados Unidos no longínquo ano de 1936, que comprei de um simpaticíssimo senhor no alto de Pinheiros, outra, uma mais jovem, dos anos de 1970, adquirida de um grande amigo mecanógrafo remanescente aqui de São Paulo. Uso-as quase diariamente. Fugi à regra dos amigos meus contemporâneos e aprendi a digitar no computador datilografando nessas velhas damas de ferro. Tenho orgulho em ter aprendido assim, adquiri disciplina ao escrever. 

    Há alguns meses, ganhei do meu avô um objeto que para mim é um tesouro de valor inestimável: seu primeiro aparelho de barbear, um Gillette de aço inox fabricado aqui no Brasil em meados dos anos de 1960. Esse simples instrumento, símbolo do quotidiano masculino, é uma verdadeira obra de arte. Não se fazem mais barbeadores como antigamente. Hoje, na era do descartável, parece que o supérfluo dos objetos ordinários invadiu também a personalidade dos seus donos, transformando-os em indivíduos rasos, mesquinhos e incapazes de uma reflexão mais profunda sobre si mesmos. O cuidado, o esmero que, por exemplo, um aparelho de barbear permanente inspiraria no homem, já não acontece. Os conglomerados do mercado que se alimentam da obsolescência programada forçam uma mudança de perspectiva nos indivíduos que se servem dos seus produtos e serviços: tudo tem que ser fácil, rápido, seguro e barato. Cria-se a ilusão, sobretudo para os habitantes dos grandes centros urbanos, que a vida deve ser igualmente vaga. O impacto psicológico em quem cresce em tal ambiente é a perda do senso de sacrifício, do sentido do esforço e da realidade do cumprimento do dever. 



     Conservo, na minha biblioteca particular, uma coleção invejável de livros de muitas épocas. O mais antigo exemplar, data do início do século XIX, é uma edição francesa do clássico do escocês Walter Scott, "Guy Mannering". Há também uma edição bilíngue latim/francês do fin de siècle dos discursos de Júlio César sobre a conquista da Gália. Os discursos estão compilados num volume único. Esta é uma raridade, pois todas as edições posteriores foram publicadas em dois volumes. Vale uma pequena fortuna. Tenho também as obras completas de Machado de Assis de várias editores e épocas diferentes. Deste autor, conservo, orgulhoso, as "Memórias Póstumas de Bras Cubas", numa belíssima edição da Editora Garnier de 1925. A monumental História da Literatura Ocidental em dez volumes, de Otto Maria Carpeaux, é um dos ítens mais importantes. Há também um livro didático de 1888 utilizado nas escolas paroquiais do Império do Brasil. Tenho livros de muitas épocas, não é possível falar sobre todos aqui. Certa vez, ouvi um rapaz dizer que ele jamais lia livros que não tivessem sido publicados nos últimos vinte anos. Tempus fugit, é o que diz o velho ditado. 




quarta-feira, 16 de setembro de 2020

O bom leitor instala-se na realidade

 

   

    "(...) Os socialistas começaram por expor a teoria deles, que é conhecida: o crime é um protesto contra a anormalidade do sistema social, nada mais. Não admitem, pois, qualquer outra causa. 


    -- Pois mentiste! -- exclamou Porfiri Pietróvitch. Era visível a sua animação, rindo a cada instante e olhando para Raskólnikov. 


    -- Não é mentira! Não admitem mesmo qualquer outra causa! A seu ver, 'o indivíduo é vítima do meio', e isso é tudo. Eis sua magnífica frase. Daí se deduz diretamente que, se a sociedade for construída corretamente, todos os crimes vão desaparecer de uma só vez, já que, desse modo, não haveria contra o que protestar, e todos, no mesmo instante, passariam a ser justos. Não se considera a natureza, deixa-se a natureza de fora, não se enxerga a natureza! Para eles não é a humanidade que, desenvolvendo-se historicamente e viva, até o fim, acabará por transformar-se em uma sociedade normal, mas, pelo contrário, é o sistema social que, saindo de uma cabeça matemática, irá estruturar toda a humanidade e, em um abrir e fechar de olhos, torná-la-á justa e pura, mais rápido do que qualquer processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico natural. É por essa razão que eles instintivamente não toleram a história: nela só vêem monstruosidade e estupidez. Toda a culpa recai na estupidez. Também é por essa razão que eles não toleram o processo vivo da vida, e para eles a alma viva não tem lugar. A alma viva tem exigências, não obedece à mecânica, é desconfiada e retrógrada. E ainda que cheire à coisa morta, pode ser feita de borracha... só que então não será vida nem terá vontade, será uma escrava, incapaz de revoltar-se... O fundamental é isso: não ter de pensar. Todo o mistério da vida cabe em duas folhas de papel! (...)." 


    Dostoiévski em "Crime e Castigo". Tradução de Ivan Petrovitch e Irina Wisnik Ribeiro. 


    

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Torres Gêmeas

 



    Sobre o 11 de Setembro -- Tuesday, September 11th, 2001.

    Eu tinha sete anos e estava brincando de efeito dominó com as fitas Cassette no tapete da enorme sala de minha avó. Eram fitas que guardavam momentos de família, como o registro do meu batizado, por exemplo. A gente presente estava assistindo qualquer coisa na tevê e me censurando, de quando em quando, pelo barulho do choque entre as fitas enfileiradas quando eu, tomado por um contentamento que só às crianças é permitido experimentar, desencadeava, com o dedinho, o fascinante efeito cascata só para ver os objetos indo a baixo levados uns pelos outros. Tudo acontecia muito rápido. Tudo fora planejado por mim e eu via a tudo com imenso orgulho e satisfação. Subitamente, quando eu principiava a restituir as fitas aos seus lugares pré-determinados, ouvi um chamado proveniente da tevê que arrancou de todos os presentes na sala exclamações pavorosas. Era a jornalista que narrava, com ar de assombro, o que ouvíamos como "atentado terrorista às torres gêmeas em Nova York." Não conservo nitidamente na memória minha reação às palavras da jornalista, só atinei para a importância do momento quando ouvi, apreensivo, as exclamações daqueles que estavam sentados no sofá: "Olha, meu Deus do céu!", "O que é isso, meu Senhor?", "É o fim do mundo!", "É mesmo a volta de Christo!". Parecia que o mundo chegava ao seu termo naquele início de século XXI. Voltei os olhos para o tapete e gritei impropérios malcriados contra um tio que chutara, sem querer, um dos objetos do meu projeto infantil.  

  Alice se despede    Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seu...