domingo, 27 de dezembro de 2020

A Bíblia na Universidade

 



    Alguém disse que o cânone bíblico é a síntese de todos os gêneros literários. E é, de fato. Mutatis mutandis, todas as formas de expressão da condição humana na realidade estão presentes ali. As Sagradas Escrituras são, portanto, a fonte de inspiração que alimenta a busca do homem, ao longo dos séculos, pela linguagem, pelas fórmulas verbais precisas para exprimir a sua condição. A precisão de tais fórmulas, na verdade, reflete a disposição do espírito do homem ocidental. Sua cultura, edificada sobre os fundamentos da religião judaica e, sobretudo, da religião cristã no período medieval, está, portanto, impregnada de elementos éticos, morais e psicológicos expressos primeiro naquelas fórmulas verbais presentes no Livro Sagrado. Daí a importância permanente dos estudos da Bíblia no âmbito da pesquisa histórica, cultual e, principalmente, literária do Ocidente: ela sintetiza a dinâmica humana em todas as esferas de atuação possíveis e imagináveis. Seu repertório de tipos humanos formou a consciência do homem ocidental. 

    Dito isto, é imprescindível os estudos sistemáticos do Cânone Sagrado no âmbito acadêmico não religioso. Digo não religioso, porque, no contexto religioso, os estudos das Escrituras seguem, tradicionalmente, um padrão de excelência só dispensado aos vocacionados ao sacerdócio ou à vida religiosa. Tal excelência, aliás, fora o fundamento que, no auge da civilização cristã, no medievo, lançou as bases para a criação das primeiras universidades na Europa. No entanto, fora do âmbito religioso, o interesse pelo Livro Sagrado foi, em função do surgimento de correntes ideológicas antipáticas à religião cristã no espaço acadêmico, perdendo força. Esta antipatia, aliás, oriunda da universidade, impregnou-se nas esferas da cultura e da política, implicando numa mudança radical da cosmovisão do homem ocidental. 

    Contudo, a antipatia sistemática à cultura cristã na universidade não é justificativa para a exclusão, praticamente completa, dos estudos da Literatura Sagrada. Tal exclusão é, isto sim, um fator de alienação. Os elementos que compõem o ambiente acadêmico contemporâneo não podem renegar a herança intelectual que receberam dos cristãos sem uma auto alienação. Honestidade intelectual, responsabilidade, senso do dever e senso das proporções são alguns dos principais critérios da investigação acadêmica herdados dos medievais. Contudo, o principal deles, a busca pela verdade, sucumbiu vítima das conspirações ideológicas dos novos acadêmicos. 

    É dentro dos limites da pesquisa literária, portanto, que reside a importância máxima da manutenção da presença da Bíblia como tema nas grades curriculares dos cursos de Letras atualmente. A literatura é o registro das experiências humanas possíveis e imagináveis e o cânone bíblico é, por sua vez, a obra de literatura por excelência. Entender o desenvolvimento da literatura no Ocidente, o surgimento dos diversos gêneros literários, das novas escolas e correntes de pensamento nos limites da literatura, implica assimilar os temas apresentados nos diversos livros que compõem o Cânone Sagrado. Sem essa chave de interpretação da expressão da condição humana nas vicissitudes da realidade, é impossível observar com clareza os mecanismos responsáveis pelas mudanças culturais e psicológicas sofridas pelos ocidentais ao longo de, pelo menos, dois mil anos de sua existência. É, portanto, desonesto não estudar a Bíblia na universidade e, mais do que isso, é perigoso submetê-la aos crivos sujos das interpretações ideológicas, pois eles recortam a literatura da realidade e forçam uma análise altamente subjetiva da condição humana, desumanizando-a. 

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Registro de uma manhã de Natal

     



    Caminhar por São Paulo no dia de Natal não é só um convite para o estranhamento da quebra do ritmo frenético da cidade, é também um convite para uma observação mais apurada dos efeitos da passagem do tempo. O que é o Natal senão um marco permanente no transcurso do tempo? E aqui está um registro não planejado, feito por acaso, da minha caminhada desta manhã. A fotografia acima, que está em domínio público, fora batida por Werner Haberkorn nos anos de 1940. O registro é do prédio do Instituto Biológico, que teve sua construção concluída, em estilo art-decó, em 1945. Haberkorn fora engenheiro, fotógrafo e empresário alemão radicado no Brasil nos anos de 1930. A Fotolabor, empresa pioneira na fabricação e comercialização de cartões-postais no Brasil, fora um empreendimento idealizado e consolidado por ele em 1940. O repertório fotográfico do estúdio de Werner Haberkorn é um verdadeiro tesouro da memória paulistana, porque contém registros das diversas transformações sofridas pela cidade ao longo das décadas de 1940 e 1950. Deixei o local do meu estágio, nas proximidades do Instituto, com a sensação da evidente anormalidade: era a calmaria, o silêncio incomum só violado pelo canto dos pássaros que se amontoavam nas árvores da Av. Dr. Dante Pazzanese. Antes de começar a escalar a Conselheiro Rodrigues Alves para acessar o metrô, porém, lembrei do velho prédio do Instituto e das muitas ocasiões em que desejei fotografá-lo, mas, intimidado pelo intenso movimento do local, pelas pessoas, pelos carros, pelas motocicletas nunca tive coragem. A quietude desta manhã de Natal fora o convite irrecusável para bater a foto abaixo.




domingo, 20 de dezembro de 2020

Grande "reset" mundial



    

    A origem etimológica do termo entre aspas é "refazer", "começar de novo", "restaurar". O verbo resetar, portanto, designa a condição na qual existe a necessidade de, sob critérios específicos, dar nova forma a alguma coisa ou, mais precisamente, trazer tal coisa à sua forma original. No entanto, no âmbito de um reset mundial, isto é, de uma nova forma do sistema do mundo, o intento não é restaurar as condições existenciais do indivíduo na sociedade, mas reforçar o panorama de supressão da sua liberdade já entrevisto no contexto atual. Ao analisar a vivência da sociedade através de um prisma histórico, é possível perceber uma disparidade interessante: o progresso material da sociedade não acompanha a afirmação da liberdade do indivíduo. Na verdade, acontece exatamente o contrário. 

    Na Idade Média, no contexto do Feudalismo, por exemplo, os meios efetivos através dos quais o indivíduo poderia afirmar a sua liberdade, exigir a validação dos seus direitos em face também dos direitos do senhor feudal, eram, comparados ao contexto atual, imensamente maiores. O senhor feudal dispunha de algumas dezenas de soldados que, não obstante, eram camponeses que cultivavam suas porções de terra dentro dos limites do próprio território feudal e, portanto, se defendessem o feudo, defenderiam seu meio de subsistência também, mas, contra os membros deste mesmo feudo, o nobre não dispunha de meios efetivos de coerção. Num contraste trágico, hoje, os indivíduos que vivem como servos das "glebas" multinacionais nos grandes centros urbanos, são facilmente doutrinados pelo panorama dos valores dos novos e imensamente poderosos senhores feudais. 

    Os tais senhores feudais contemporâneos detêm, na verdade, um poder que está muito para além dos limites da imaginação dos seus pares do passado. Na realidade da condição humana vivenciada entre os séculos V e XIII, na Alta Idade Média, ao contrário do que a propaganda revolucionária apregoa desde, pelo menos, o século XVIII, a experiência da efetiva liberdade era uma realidade. Se um nobre decidisse agir com tirania, infringindo o contrato de terras estabelecido entre si e os camponeses, como faria para assegurar sua autoridade? Disporia seus soldados contra os membros do feudo? Como, se estes mesmos eram os membros do feudo? Se esta situação, num momento de crise, ganhasse forma na realidade, só uma força resistiria: a rebelião das massas. Sem os meios tecnológicos de coerção efetiva, o senhor feudal se veria num embate tête-à-tête contra o seu povo encolerizado. Seriam espadas e escudos contra foices, machados, paus e pedras. 

    Hoje, com a abundância de novos e cada vez mais sofisticados meios de controle das massas, é fácil perceber que aqueles que exercem o poder, o fazem desde os píncaros de uma tecnocracia tirana. A experiência das redes sociais, as funções cada vez mais invasivas dos aplicativos de celular, o monitoramento constante das pessoas nas zonas urbanas, o enviesamento dos noticiários da grande mídia são alguns exemplos do poder dos senhores feudais da atualidade. Estes, aliás, se arrogam o direito, inclusive, de decidir se um ser humano deve ou não viver: a campanha global pró-aborto é a prática, forçada, do corpo de valores e crenças desses senhores. O desejo da morte de bebês no ventre de suas mães é mais uma mostra da disparidade, da desarmonia entre os valores da sociedade. 

    Na Idade Média e, mais precisamente, antes do advento do Estado Moderno, o mesmo corpo de valores, crenças e doutrinas religiosas observados pelos governantes era também observado pelos membros do povo. O conflito de cosmovisões era, no geral, inexistente e, quando surgia num contexto restrito, permanecia aí, fora do campo de visão dos elementos protagonistas da sociedade. Hoje, não mais. A religião dos governantes se tornou esotérica para o povo, implicando, portanto, no surgimento de uma série de conflitos de valores. Basta constatar a simpatia dos líderes atuais pelo aborto, pela liberação das drogas e pela união homossexual, por exemplo. A sociedade atual caminha para um desfecho no qual o enredo oficial será a narrativa dos detentores do poder máximo. Um contexto no qual a liberdade do indivíduo como a conhecemos não mais existirá e tudo o que será seu por direito será o dever de pedir permissão. 


sábado, 19 de dezembro de 2020

Estrela de Bethlehem escaldante

     


    Cá nas bandas do Ocidente, o estereótipo do Natal é a representação da casinha perdida na neve, com sua chaminé esfumaçada e esquilos, serelepes, com suas bochechas empanturradas de nozes, correndo pelos telhados de ardósia. A realidade do meu Natal, no entanto, é ligeiramente diferente: calor, tórrido calor. De maneira que, daquele estereótipo, tudo o que permanece é a atmosfera da lareira, da lenha em brasa, do tição flamejante. Aqui em São Paulo, no trópico de Capricórnio, a atmosfera natalina se mantém, incólume, às voltas dos 30 graus Celsius. Já no Rio de Janeiro, capital espiritual do Brasil, os termômetros celebram o nascimento do Redentor com maior efusividade. Coitados. 

domingo, 6 de dezembro de 2020

Comentários sobre "Machado de Assis -- Estudo crítico e biográfico", de Lúcia Miguel Pereira

    

    Por recomendação do professor Rodrigo Gurgel, iniciei a leitura da biografia de Machado de Assis escrita pela Lúcia Miguel Pereira, "Machado de Assis: Estudo crítico e biográfico". Tenho em mãos a 6º edição, editada pelo Senado Federal para a coleção "Edições do Senado Federal"-- Vol. 236. Já li algumas pequenas biografias e ensaios biográficos sobre o bruxo do Cosme Velho. A última, do ensaísta Gilberto de Mello Kujawski, colaborador do Jornal da Tarde e d'O Estado de São Paulo, fora uma grata surpresa, porque no seu livro, "Machado de Assis por dentro" -- editora Migalhas, 2011 --, o autor enfrenta o problema da politização do literato carioca. Senti como se ele fizesse isso como quem suspirasse, aliviado por tirar um engasgo da garganta, por protestar finalmente contra o injusto enviesamento ideológico adversário do nosso maior escritor. A politização dificulta a compreensão, porque a submete a um crivo de análise parcial, incompleto, falho. Mas agora, voltando à Lúcia Miguel Pereira, é fácil perceber o porquê da consagração desta biografia como referência para os estudos da vida e da obra do ilustre escritor carioca: a Lúcia teve acesso às fontes primárias decisivas para o delineamento do perfil do seu biografado, conversou com contemporâneos do escritor -- a primeira edição do seu livro data de 1936 --, mas, acredito, o seu trunfo foram a admiração e o amor sinceros para com o romancista. Antes de empreender seus esforços para escrever sobre o Machado, Lúcia fora uma leitora atenta, admirada e devotada do escritor, o que a levou a escrever não só com lucidez e profundidade, mas com responsabilidade também; com a consciência clara do peso de transmitir, de comunicar as experiências de suas leituras. Lúcia contava trinta e cinco anos quando publicou seu livro. 


    Na sua biografia sobre Machado de Assis, a Lúcia Miguel Pereira diz que, quando jovem, Machado já demonstrava uma virtude admirável: nutria admiração sincera pelo talento dos seus amigos, jovens escritores que, assim como ele, guardavam a esperança de serem lidos e reconhecidos pelos seus trabalhos. Por volta dos vinte anos, em 1860, Machado, que então vivia com a madrasta, Maria Inês, nas cercanias do Morro do Livramento, no subúrbio da Côrte, depois de abandonar a função de tipógrafo nas oficinas do seu amigo, Paula Brito, por influência de outro amigo, Quintino Bocaiúva -- o ferrenho republicano --, ingressou no Diário do Rio. Essa nova fase da sua vida resultou no amadurecimento do seu estilo literário, porque o jovem Machado, que antes só contribuía com periódicos estritamente literários, agora se via obrigado a lidar com o grande público, a lidar com a política da Côrte, a opinar sobre as questões mais urgentes do seu tempo. Contudo, para além de favorecer o desenvolvimento do seu talento, o novo emprego, claro, possibilitou ao jovem deixar o subúrbio e se transferir para o centro fervilhante da capital do Império. Nesse momento de sua vida, Machado de Assis se viu próximo de novos e promissores talentos como, por exemplo, Cézar Muzzio, Ernesto Cibrão, Sizenando Nabuco e o próprio Quintino Bocaiúva. Manuel Antônio de Almeida, Casimiro de Abreu, Macedo Júnior e seu antigo empregador, Paula Brito, estavam mortos ou morreriam em breve. 

    As letras nacionais testemunhavam o nascimento de uma nova geração. Nessa nova fase de sua vida, quando, finalmente, parecia alcançar uma melhoria significativa e experimentar um início de reconhecimento, Joaquim Maria revela um aspecto surpreendente de seu caráter: sua imensa generosidade. Ele não inveja os seus pares, antes os estima, os admira e, principalmente, os ajuda também. A pobreza, a mulatice -- que, naquele tempo, tinha um peso real para a superação das classes --, a gagueira, a epilepsia e, em suma, seus padecimentos da vida não foram, jamais, uma justificativa para que nele se desenvolvesse uma personalidade rancorosa, ressentida ou invejosa. Machado de Assis, apesar de ser acreditado ateu por alguns, professava exemplarmente o Mandamento do amor ao próximo. Isto, somado ao seu caráter introvertido e observador, o coroou com o poder de compreensão da condição humana que o tornou digno do título de nosso maior escritor


    Por volta dos quarenta anos, em 1878, Machado de Assis, que sofria desde sempre de epilepsia, começou também a sentir os sintomas de uma afecção intestinal, provocada pelo excesso de trabalho. Decidiu, então, suspender suas colaborações literárias para os jornais nos quais escrevia e, com a licença do seu cargo público na Secretaria da Agricultura, partiu, com sua esposa, Carolina, para Nova Friburgo, na serra fluminense. O casal lá permaneceu por uma estadia de três meses que, com os restabelecimento do doente, se estendeu por mais três. Lúcia Miguel Pereira diz que essa curta fase da vida do escritor fora decisiva para o seu definitivo amadurecimento. Machado de Assis, carioca nato, nunca saíra da cidade do Rio até aquele momento, nunca experimentara a liberdade de se encontrar fora do ambiente urbano, longe dos amigos, dos cafés, dos clubes literários, das ruas empoeiradas por onde circulavam os bondes puxados por burros o onde se ouviam os pregões dos vendedores ambulantes. Esse momento de descanso -- o primeiro de sua vida -- permitiu que o escritor mergulhasse em reflexões novas sobre a vida e, principalmente, sobre a morte. Quando desceu da serra, o escritor estava mudado para sempre, alcançara, finalmente, o domínio pleno da sua linguagem, dos seus meios de expressão. Sua principal obra, Memórias Póstumas de Brás Cubas, reflexo das suas mais profundas meditações, nasceu pouco depois de seu regresso à vida urbana. 


    A sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras fora realizada no dia 20 de junho de 1897, Machado de Assis, que passou a vida alimentando o sonho de ver as letras nacionais assim congregadas em uma instituição promotora, estava realizado. Contudo, a vida é uma velha avarenta: quando dá uma alegria, cobra logo com usura os juros da dor. A Lúcia diz que, em novembro daquele mesmo ano, as Diretorias-Gerais de Viação e Obras Públicas foram reunidas em uma só. Machado, que sempre fora exemplar servidor público, testemunhou com frieza -- e talvez com tristeza -- o golpe que instaurou a República. No ano do golpe, 1889, fora nomeado pela Princesa Isabel diretor da Diretoria-Geral do Comércio, cargo que mudou de nome com a chegada dos republicanos ao poder. O novo governo, já esbanjando suas convicções positivistas, julgou que o cargo deveria ser exercido por um técnico, por isso, considerou o velho Machado de Assis, adido, isto é, incapaz. Seu amigo, Mário de Alencar, exprimiu bem o espírito da época: "A lei era um embaraço; mas as leis fazem-na os homens para as ocasiões, quase sempre com pretexto de servirem aos outros, e com o fim secreto do proveito próprio. E assim foi que com a lei tiraram-lhe o que a lei lhe garantia!". Mas, o escritor não permaneceu injustiçado por muito tempo. Em 1902, Rodrigues Alves assumiu a presidência da República e, na chefia do Ministério da Viação, estava Lauro Müller. Um dos primeiros atos do novo governo foi chamar o bruxo do Cosme Velho de volta à atividade de diretor-geral de Contabilidade do Ministério da Viação, cargo que exerceria até morrer. Foi um susto pelo qual passou o escritor nessa última fase de sua vida. 


    Em certo momento da vida, quando o escritor já gozava de alguma fama entre os poucos letrados da Côrte, ele protagonizou uma cena burlesca, mas que revelara muito da sua personalidade: enquanto revisor de provas para um certo amigo editor, Machado de Assis, ao perceber que deixara passar um erro, ajoelhou-se perante o editor, implorando para que a publicação fosse recolhida imediatamente! Ele chegou até mesmo a dizer que estava disposto a tirar do próprio bolso o montante referente às edições já vendidas. O editor ficou sem palavras e, talvez por um breve momento, sem reações também. Pudera. Machado, que sempre fora um tímido de pantufas, estava ali, de joelhos, implorando para ter a chance de corrigir um erro de Português. O editor, tocado pela sincera demonstração de amor do escritor pelo seu ofício, publicou uma errata. Esse episódio ilustra de modo perfeito o quanto Machado de Assis amava o que fazia. Só mesmo um escritor que amasse o seu ofício se colocaria assim, de joelhos, para implorar a oportunidade de se retratar com o leitor por um simples e inocente erro tipográfico -- de "digitação". Essa atitude, em outros escritores, talvez parecesse mera afetação, mas não com o Machado. Sua obra, sobretudo o que ele produziu depois de 1879, depois de Brás Cubas, é um conjunto de provas definitivas que atestam seu talento e amor pelas letras. 


    Nos capítulos finais, a autora conta, seguindo a previsibilidade do gênero literário das Biografias, a morte do escritor. No entanto, como se trata de Machado de Assis, o episódio de sua morte não poderia acontecer sem a interferência de algum elemento estranho, incomum, algo que fugisse da regra do pranto e da reflexão sobre o termo da vida. Não. Aconteceu que, estando o escritor em agonia, tendo ao seu lado uma verdadeira plêiade de amigos ilustres literatos e também de pessoas comuns, que cuidavam dele com o mesmo carinho com que cuidaram de Carolina, falecida há quatro anos, Machado recebeu uma visita curiosa: a do fundador do Partido Comunista Brasileiro. Sim. Em uma noite qualquer de 1908, um rapaz de dezessete anos que atendia pelo esquisito nome de Astrojildo Pereira, bateu à porta da casa do Cosme Velho e, passando pelos presentes ilustres, entrou no quarto onde Machado de Assis começava a agonizar. Beijou-lhe a mão e o abraçou. Se o escritor, que já começava a sentir a leveza do outro mundo, pudesse se restabelecer naquele mesmo momento e, sentado à escrivaninha, voltar para o seu ofício, poderia, imagino, escrever poemas em sincera homenagem ao moleque todo carinhoso que decidiu fazer-se presente na sua hora derradeira. 

    As testemunhas do afeto do jovem pelo velho literato foram ninguém menos que Euclides da Cunha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia, Graça Aranha, Coelho Neto e Rodrigo Otávio; além, é claro, das famílias que prestavam auxílio ao moribundo. O moleque Astrojildo, claro, ainda era um adolescente, estava ali como admirador do seu escritor, do seu ídolo. As leituras da obra machadiana poderiam ter despertado o rapaz para um mundo novo, poderiam tê-lo apresentado uma visão mais profunda da condição humana. Não havia nada ali que pudesse dar pistas dos descaminhos da consciência que o rapaz tomaria anos depois quando, em 1922, aos trinta e dois anos, fundara o PCB. É interessante notar como, mesmo aquelas pessoas inteligentes e, aparentemente, enviesadas para um bom caminho, para uma direção na qual as coisas tendem a se mostrar mais nítidas, mais sólidas e presentes, podem tomar rumos inesperados. Por que as pessoas se tornam estúpidas? Por que a inteligência se corrompe? Por que o gênio pode servir ao mal? Essas são indagações que devem ser feitas precisamente para quem, levado pela perda do sentido da vida, como os personagens do Machado, se permitem o mal. Astrojildo, que não estaria ali, no leito de morte do escritor, se não lhe fosse um leitor devotado, fora, com tão pouca idade, impregnado pela frieza do ceticismo e da falta de sentido para a vida presente na obra do Machado. O estilo, irônico e pessimista, deve ter servido de preparo para o materialismo, o cientificismo e o pragmatismo das ideologias que corromperam sua mente. 

    Mas, em Machado de Assis, os personagens não se entregam ao mal integralmente, entregam-se à dúvida; a uma dúvida permanente sobre o sentido da vida, sobre pelo que vale a pena viver e morrer. Na verdade, porque buscam sempre por uma certeza, ou, pelo menos, porque aparentam buscar por respostas concretas para as angústias da existência, tendem para a única certeza objetiva: a Morte. Daí o pessimismo machadiano. Astrojildo que, antes de se lançar em defesa do Comunismo, fora anarquista, deve ter encontrado na obra do Machado o principal elemento de que precisava para compor a filosofia da sua ação política: a vida não tem sentido. Desse ponto até a completa negação da transcendência na realidade, até à fé cega no Estado e na crença de que um sistema político tecnicista ofereceria a solução para todos os problemas da humanidade fora um pulo. Um pulo de moleque. O que Machado de Assis diria se pudesse antever que aquele rapaz que tão afetuosamente beijava-lhe as mãos se tornaria o fundador, no Brasil, do movimento político mais desumano já registrado na História? O Machado, tão observador, tão criterioso, tão atento aos movimentos das criaturas à sua volta seria capaz de conceber os horrores do Comunismo? Seria capaz de depositar a fé que ele, durante toda a vida, pareceu negar a Deus, num sistema rígido de controle e estímulo do comportamento humano? Não. Machado de Assis compreendeu a angústia da condição humana, experimentou a liberdade criadora e, por isso, não cairia nesse engano. O bruxo do Cosme Velho, apesar de contraditório, antes como indivíduo humano do que como escritor, fora um convicto praticante do maior dos Mandamentos


    Por fim, temos as palavras sinceras do seu maior crítico, Sílvio Romero que, guardadas as devidas proporções, esteve para Machado de Assis o que Robert Hooke esteve para Isaac Newton ou, mais próximo da Arte, o que Antônio Salieri esteve para Wolfgang Amadeus Mozart.

    "Tome Machado de Assis um motivo, um assunto entre as lendas eslavas", disse Sílvio Romero que não pode ser acusado de complacência com o autor do Memorial de Ayres, "há de tratá-lo sempre como brasileiro, quero dizer, com aquela maneira de sentir e pensar, aquela visão interna das coisas, aquele tic, aquele sestro especial, se assim devo me expressar, que são o modo de representação espiritual da inteligência brasileira...

    "Seus romances, seus contos, suas comédias encerram vários tipos brasileiros, genuinamente brasileiros, e ele não ficou, ao jeito de muitos dos nossos, na decoração exterior do quadro; mais penetrante do que qualquer desses, foi além, e chegou até a criação de verdadeiros tipos sociais e psicológicos, que são nossos, em carne e osso, e essas são as criações fundamentais de uma literatura". Sílvio Romero. 












  Alice se despede    Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seu...