domingo, 25 de outubro de 2020

Resenha do livro "Um Milagre em Paraisópolis", de Fábio Gonçalves



    Conheci o Fábio Gonçalves há três anos quando, através de um amigo em comum, fui convidado a integrar um grupo de estudos na Av. Paulista por nome de Saquaremas, uma dessas confrarias onde só se reúne gente boa e nas quais de tudo se discute. Uma congregação de entusiastas dos estudos da Filosofia, História, Literatura, Política e de tutti quanti têm o potencial de atrair mentes e corações sedentos de conhecimento e inconformados com o estado de coisas circundante. Nessa confraria, não só os temas ordinários de uma lista de categorias do conhecimento humano entravam em debate, mas também o status quo da política do país. Passei a integrar os Saquaremas e, com o passar do tempo, notei que a liga das discussões, a tônica dos debates era uma preocupação com as questões mais urgentes não só da política, mas da cultura do nosso país. O Brasil padece de um mal e esse mal se revela na baixeza das disposições do espírito dos brasileiros: a miséria intelectual, as ideologias, o desdém pela cultura, o desprezo pelo conhecimento, o desamor à verdade. Nós líamos e comentávamos sobre nossas leituras. Em algumas ocasiões, convidados ilustres honravam aquele grupo de estudos com suas visitas, noutras, o que era mais comum, os membros do grupo conduziam os debates, trazendo o tema da vez. 

    Os Saquaremas, na verdade, era a designação de dois grupos de pessoas: os confrades, que se reuniam semanalmente para as discussões filosóficas e os jovens estudantes que participavam de um projeto caritativo promovido pelos confrades. Havia, portanto, a Confraria Saquarema e o Projeto Saquarema. Neste, os adolescentes estudavam sob uma metodologia muito semelhante a de um curso pré-vestibular, mas com uma diferença: não havia enviesamento ideológico, de maneira que os alunos, aspirantes a universitários, preparavam-se para o canino ambiente acadêmico através de um crivo limpo. Por exemplo, nas aulas de História do cursinho, o pano de fundo interpretativo dos fatos não era preenchido pela dialética marxista da permanente luta de classes. Não. E, nas aulas de Língua Portuguesa e de Literatura, os parâmetros de análise das grandes obras da Literatura Universal presavam a objetividade da condição humana expressa na realidade, não o relativismo extremado que dissolve tudo, inclusive, claro, a própria linguagem. Em uma certa ocasião, numa manhã de sábado, cheguei atrasado, esbaforido de caminhar a passos largos desde a estação Brigadeiro até o prédio onde a reunião acontecia. Depois de subir até o andar das salas, saí do elevador e entrei no pequeno hall onde me sentei. Tirei do bolso da camisa um lenço de papel com o qual enxuguei generosas camadas de suor da fronte. De súbito, ouvi uma voz familiar que provinha de uma sala nas adjacências do hall. Uma voz de homem dizia coisas sobre Literatura. Eu ouvia fragmentos do discurso curioso para saber quem os proferia: "(...) nós temos que prestar atenção às referências da Literatura na realidade (...)". Era o professor Rodrigo Gurgel que fora convidado, naquele dia, para falar aos adolescentes. 

    A mente por trás desse projeto era o Rodrigo Morais, grande amigo com quem tive a infelicidade de conviver tão pouco. Para consolidar o projeto, o Rodrigo recebeu a ajuda de alguns outros corajosos, dentre os quais, o Fábio e sua esposa, Ana. Demandava-se a boa vontade de voluntários para somar forças, o Rodrigo precisava de professores. Os debates e exposições filosóficas dos confrades ocorriam numa sala e as aulas para os adolescentes do Projeto Saquarema, noutra. Muitos dos amigos que falavam de Filosofia, História, Literatura ou qualquer outro tema na Confraria, geralmente expunham o mesmo tema para os jovens estudantes no Projeto Saquarema. Se me lembro bem, o Fábio lecionava Redação e História para os adolescentes. "(...) um shudra é alguém que está na base da hierarquia (...)", o ouvi dizer quando cheguei para mais uma reunião. Nesse dia na Confraria, estava em exposição um interessante sistema hierárquico decorrente das antigas filosofias orientais, no qual o topo era ocupado pelo sábio, seguido, numa visão descendente, do sacerdote, do guerreiro, do trabalhador e do shudra, a mais baixa e simplória das criaturas. "(...) você nota que o shudra é o cara que está mais próximo da terra, até o seu jeito de andar é curvado, meio corcunda (...)", disse o Rodrigo Morais, completando. 

    Um amigo que ajudava na prospecção de convidados para palestrar era o Roberto Barricelli, sua disposição era tamanha que, em algumas ocasiões, ele tirava do próprio bolso os custos com o transporte dos convidados. Dos convidados ilustres que aceitaram o convite para palestrar na Confraria Saquarema, recordo-me bem do Cabo Anselmo, do Iskandar Riachi -- líder da Liga Cristã Mundial e porta-voz dos cristãos perseguidos no Oriente Médio --, do editor Márcio Scansani, dos candidatos a cargos políticos -- destes, houve uma que, inclusive, elegeu-se à deputada por São Paulo, uma mulher muito bem articulada que impressionou a todos com a sua história, ela protagonizou a "prezada" do "Prezada, não estou à venda". Por fim, até artes marciais se praticava ali. Era noite de sábado quando cheguei em casa com o braço roxo e inchado, eu havia apanhado do Rodrigo Morais, mas, claro, também revidei e tenho certeza de que o baixinho, por seu turno, foi para casa roxo e dorido. A título de despertar a percepção da autodefesa nos membros da Confraria Saquarema, o pessoal de uma sinagoga de São Paulo fora convidado para nos ensinar a arte da guerra na prática. Um dia, participei de um treinamento que simulava o ataque a uma igreja. Tempos depois, alguns membros da Confraria foram voluntários para cuidar da segurança numa celebração popular na paróquia de Santa Generosa, na Vila Mariana. Fui convencido de que a mais eficiente das artes marciais é o Krav Magá, pela sua versatilidade de técnicas de defesa e de ataque. Este fora o ambiente no qual, há três anos, eu conheci o Fábio Gonçalves. 

    A verdade é que eu não conhecia o talento literário do Fábio até ler o seu "Um Milagre em Paraisópolis", grata surpresa! A história começa por nos apresentar ao "Bíblia", personagem central da narrativa, o elo de ligação que concatena todos os elementos da trama, o típico brasileiro pobre do sertão. Mas, o "Bíblia" só recebe esta alcunha quando, já em São Paulo, decide abandonar as coisas do mundo e voltar-se para as coisas de Deus. Será? O Fábio deixa claro, tanto pelo seu estilo, quanto pela construção dos personagens, que ele, autor, é um homem lido, que, com um terço da vida completos, tem já alguma bagagem cultural para se valer. É impossível não sentir a presença de Dostoiévski ou do nosso Machado enquanto se vive a novela. Na sua narrativa, há também a presença de outro elemento característico de forma e de substância: a Bíblia. O livro sagrado é a síntese de todos os gêneros literários, os grandes ornamentos da Literatura do Ocidente bem sabiam disto quando se valeram dela para compor as cenas mais belas, profundas e tocantes de suas obras. "Os olhos do Senhor estão sobre nós". É perante a Onisciência Divina que os personagens são instados a comparecer e este vocativo constante é a tônica permanente da trama. O falso moralismo é rompido pela força de uma confissão sincera, pela busca verdadeira da consciência individual pelo perdão, pela redenção de alma. E é na triste figura do Pr. Josenildo, cognominado o "Bíblia", que esta busca é consumada através de uma contrição perfeita. 

    Para quem vive nos grandes centros urbanos do Brasil, a figura do "Bíblia" não é estranha. Ele é simplesmente um converso à fé cristã ou, pelo menos, a uma modalidade desta para a qual ele dá uma interpretação que, via de regra, é feita à revelia da tradição milenar da religião. O "Bíblia" é um típico protestante de denominação nova, um crente que frequenta assiduamente a igrejinha do bairro. Antes, um ébrio desbocado, um beberrão obsceno, um mentiroso engenhoso e contumaz, agora, converso dos seus maus caminhos, um homem transformado, uma "nova criatura". Quem operou o milagre? Um homem, um daqueles irmãozinhos que, com insistência heróica, vive a levar as Boas-Novas do Evangelho aos corações desesperançados. Ante à força retórica do irmãozinho, Josenildo capitula, torna-se ele mesmo um crente. A vida do Josenildo efetivamente muda, seus hábitos cotidianos ganham a robustez da nova carga moral que o homem decide carregar e, a reboque, sobe-lhe à mente novo crivo de juízo: o homem torna-se um fariseu. Um hipócrita. E é aqui que os problemas começam a aparecer. Josenildo torna-se pastor. E, para seguir na condução do seu aprisco, o homem tem que aceitar um desafio. 

    Para esses migrantes do norte a lida nas férteis terras do sul exige do indivíduo coragem, exige que ele se fie com maior devoção nos valores que aprendeu na sua terra natal, nos princípios de conduta que seus pais lhe ensinaram. Quando Josenildo fora convidado para ser pastor, teve que decidir fazer o que jamais imaginara, ele tornou-se a personificação do dilema moral. Nesse ponto, ouvimos a voz do escritor russo, Dostoiévski, falando através do brasileiro, Fábio. A ambientação da novela está explicitada no título, a segunda maior favela da cidade de São Paulo, Paraisópolis, é, objetivamente, a síntese do descaso da "mãe gentil" pelos seus filhos pobres. Descaso este que pode ser rastreado até o fin du siècle, na passagem do Império para a República. A displicência desta para com os seus, como a História comprova, é a sua característica mais notável, a República é uma obra de iniqüidade. A ordem presente na disposição dos elementos externos, na estrutura urbana que deveria refletir o arranjo da ordem cosmológica, implica na boa disposição da ordem interior, no mundo interior do indivíduo. Os habitantes de Paraisópolis padecem de um mal: Apeirokalia, a falta da experiência das coisas belas. O Paraíso fora perdido para sempre, resta agora uma massa amorfa de habitações capengas nas quais os homens, cativos do pecado original, lutam para fazer de suas vidas uma permanência suportável na esfera da temporalidade. 

    O dilema moral no qual o Rev. Josenildo se vê enlaçado é o cerne da trama, o ponto nevrálgico do qual todas as consequências decorrem. Todas. Na desfigurada Paraisópolis, onde sua família fincou raízes, as consequências das ações de cada membro do clã decorrem unicamente da decisão errada do patriarca: aceitar cooperar com uma organização criminosa que tem como objetivo estuprar mulheres e que se vale das práticas ritualísticas das igrejinhas neopentecostais espalhadas por vários lugares para essa finalidade pérfida. Josenildo aceitou participar não por ser um louco tarado, mas porque precisava de dinheiro. Sua perversão ganhou corpo depois, na exata medida em que conquistava o domínio das práticas com o seu aprisco de pobres ovelhas submissas. O nome fantasia da organização criminosa é "Igreja do Dia do Juízo", local no qual as práticas hediondas, sob a suposta autoridade divina, ganhavam normatividade. Os rituais neopentecostais, que são práticas estranhíssimas que misturam glossolalia com movimentos bruscos do corpo, conferiam aos abusos do Pr. Josenildo uma autoridade psicológica inquestionável sobre as pobres consciências femininas. "Isso só funciona com as mulheres, varão", disse o responsável por cooptar o Josenildo, "se você tentar fazer isso com homens, vai ter problemas". E lá iam as cordeirinhas, entravam na saleta do pastor enfermas e tristes e saiam curadas e jubilosas, tudo através dos poderes orgásmicos do sacerdote ungido. 

    Josenildo Ferreira fora uma criança que não teve a experiência de um lar amoroso, não soube o que era afeto, perdeu a mãe ainda criança e do seu pai, Laurentino, um "cabra firmeza", jamais recebeu uma demonstração de carinho. E a sua personalidade forjada nos vergões das muitas surras o transformara num homem bruto, não à semelhança do pai, mas pior. Nildo jamais soube demonstrar amor verdadeiro pelos seus filhos. Eram três os filhos de Josenildo com sua esposa, Lindalva: Silvana, Saulo e Letícia. A primogênita, Silvana, moça recatada, era uma lâmpada apagada na casa do pai; sempre ocupada com os afazeres do lar. Sonhava em encontrar o amor da sua vida, mas, consciente de que seus atributos físicos não se comparavam aos da irmã, Letícia, se contentava, quase que inconscientemente, em ser prestativa em casa, como se isso fosse uma reação psicológica à sua falta de beleza. Letícia, "moça acaboclada, do cabelo muito liso e muito negro escorrido pelas costas, com rosto de traços finos e sensíveis como sói às mais belas orientais", era a preferida do pai. Sua beleza atraiu a atenção do Pr. Glauber, uma espécie de sócio superior do Nildo. Aquele, depois de viuvar, deu início a um plano para derrubar a cachopa da Letícia. Glauber que, desnecessário dizer, também estava envolvido até o pescoço com os crimes, queria casar-se com a filha do sócio, queria receber as bênçãos matrimoniais perante o altar da "Igreja do Dia do Juízo"

    Saulo, o "esquisito", sempre lendo. É o contraponto da trama, a antítese da narrativa, antagônico de tudo e de todos. Sua visão transcende os limites da fealdade de Paraisópolis, os limites do horizonte da consciência do rapaz estão muito para além do que pode conceber a imaginação dos seus circunscritos. Saulo lê, estuda, reflete, vive metido no quarto, de fronte para o brilho da tela do computador. Seus interesses vão desde Filosofia até Astronomia, desde Literatura até Informática, desde Teologia até Esoterismo, desde Sto. Tomás até Hermes Trismegisto, desde os dilemas morais da condenação e purificação da sociedade até a solução final para todos os problemas. Saulo curou-se da Apeirokalia, ele é o agente qualificado da operação do milagre em Paraisópolis. É ele quem concatena os pontos da realidade e idealiza um plano de vingança. O rapaz é o único que vê a extensão da rede de crimes na qual seus pais estão metidos. Seu plano consiste unicamente em expor para todos os habitantes da comunidade a perfídia daqueles que ele e suas irmãs chamam de pais. Para isso, vale-se de todo o seu talento, de toda a sua inteligência. Através da internet, estabelece contato com um grupo de "radicais" que se arrogam o título de "Os Puros", uma gangue virtual que apregoa a purificação da raça humana através da morte dos seus maus elementos. 

    Aqui há outra manifestação de Dostoiévski, o mestre dos dilemas morais. Assim como Raskólnikov delibera sobre a morte de Alena Ivanóvna, a velha usurária, Saulo julga os próprios pais e os sentencia à morte. Por quê? Porque eles são maus, porque praticam o que é reprovável aos olhos de Deus e de toda a boa gente de Paraisópolis, porque usam da mais abjeta falsidade para levar a cabo um projeto maligno, porque aviltam contra as pobres mulheres da igrejinha, porque são péssimos pais. Josenildo e Lindalva não amam verdadeiramente os filhos. Não. Os rebentos são objetos da crueldade e violência constantes do pai e são meios através dos quais a astúcia da mãe se propaga e alcança o seu fim. Lindalva, aliás, é a imagem da frustração encarnada. Suporta as dificuldades da vida à base da permanente expectativa da melhora, de um dia poder ter tudo o que sonhou, nem que para isso certos sacrifícios morais devam ser feitos. Assim o Fábio, leitor também de Machado, dá pistas do seu retrato: "(...) Ninguém pode ser condenado, de pronto, por querer sair da pindaíba, nem muito menos beatificado por querer engordar seus pastos." E assim foi que Lindalva fez vista grossa aos entraves morais das ações do marido e o apoiou integralmente em sua empreitada. Saulo sabia de tudo. Lindalva poderia ser Lisavieta, a irmã de Alena Ivanóvna, que também fora morta por Raskólnikov porque surgiu no tempo e no espaço errados. Mas, não. O pobre estudante de Paraisópolis fora mais infeliz do que o pobre estudante que vivia nos cortiços de São Petersburgo

    Saulo e o pai, Josenildo, partilham das mesmas propensões para o mal. Em Saulo, apesar da pouca idade, elas estão melhor acabadas, mas em potencial. Em Nildo, por seu turno, o mal é melhor manifesto, sua subsistência e de sua família dependem disto. Se o Pr. Josenildo não aceita entrar para o obscuro mundo do crime ele não pode dar melhores condições de vida para os seus; eles não poderão migrar da fétida Paraisópolis para um lugar melhor, não poderão ser conduzidos para os "campos verdejantes" que abundam nos seus sonhos. A crueldade de Josenildo se apresenta sob duas faces: a do pastor e a do pai. O pai Josenildo é frio, distante e cruel. Jamais chorei ao ler um livro, já tive, sim, os olhos cheios d'água com algumas cenas profundamente tocantes de alguns livros. A cena na qual Josenildo, possesso de cólera, aplica uma surra memorável na pobre Letícia, foi uma dessas. Letícia não quer se casar com o sócio do pai, o pastor Glauber, então, para amansá-la, o pai a desmonta na pancada. "(...) Daí que o faniquito de Letícia lhe rendeu uma surra bem dada com cinta de couro. (...) A surra foi inesquecível, coisa de apiedar até bandido." Esta cena se aproxima em forma e em substância do assassinato da pobre Ivanóvna por Raskólnikov. No lugar do machado, contudo, o algoz usou uma cinta, mas, mesmo assim, Letícia só faltou morrer. E, como pastor, o Nildo exerce exemplarmente a sua falsidade ideológica. Ele tem uma amante, uma "loura no viço", mocinha oriunda de Curitiba que veio para São Paulo cooptada por Saulo, para somar forças para o dia do "milagre". Ela é um importante elo de ligação para Saulo durante as suas investigações contra o pai. Mariana é seu nome. Ficou grávida e fora encontrada, verde, flutuando no rio Pinheiros. 

    O ponto alto da trama é o casamento de Letícia com o sócio criminoso do pai no negócio dos estupros, o Pr. Glauber, mas o contraponto é o que efetivamente acontece no dia do casamento. Este é o dia que ficará para sempre na memória dos vivos e na consciência das almas que, neste dia, encontraram a morte. Eis que na "Igreja do Dia do Juízo" é chegado o acerto de contas. E as peças estão todas lá, Josenildo, Lindalva, as filhas, o noivo, a comunidade, Saulo. Este, exercendo o papel do agente qualificado, é o rei do palco numa cena tragicômica. O Fábio soube bem preparar o leitor para este momento, louvo-lhe o talento. Quando estou diante de um livro verdadeiramente interessante, procuro seguir os ensinamentos do meu professor de Filosofia -- do qual o Fábio também é aluno -- e suspender a minha descrença, suspension of disbelief, para experienciar plenamente a condição humana ali exposta, para melhor vivê-la. E eis que dos aparelhos de som da igrejinha ouviram-se os gemidos de um casal em pleno ato sexual, tamanha foi a cena burlesca. E, ao fechar das cortinas, o Pr. Josenildo é levado para a prisão.  

    Ao fim e ao cabo da narrativa, tem-se nova correspondência com o autor de "Crime e Castigo". Há uma cena na qual Raskólnikov e Sônia estão sentados à roda de uma pequena mesa na casa desta. O assassino se sente esmagado pela culpa e sufocado pela crescente suspeita à sua volta. Sônia lança mão de sua Bíblia que está sobre a mesa e lê para Raskólnikov a passagem em que é relatada a ressurreição de Lázaro, no Evangelho segundo São João, capítulo XI. Josenildo, agora preso, ouve um sermão de um outro pastor, daqueles que visitam as prisões para levar conforto aos corações cativos pela culpa. Este diz: "Nossa alma é como Lázaro. É isso o que o Evangelho de hoje quer nos dizer. Quando pecamos gravemente, nossa alma vai morrendo, vai se fechando num túmulo, e vai apodrecendo, vai ficando fedida. E quanto mais o tempo passa, irmãos, quanto mais esse fedor do nosso pecado, dessa nossa alma morta, vai aumentando, mais envergonhados ficamos e dizemos ao Senhor: já cheira mal, vai embora. Pelo orgulho nos afastamos de Deus, não deixamos Cristo operar suas maravilhas." E, tal qual Raskólnikov na prisão, Josenildo sente o coração quebrantado, sente que, verdadeiramente, deve dar espaço para o arrependimento sincero tantas vezes reprimido. E então acontece, o homem arrepende-se e morre. Esta história que o estimado Fábio escreveu é notável, porque nela há a presença de uma tensão moral verdadeira, há a presença de dilemas reais pelos quais nós, brasileiros desta segunda década do século XXI, conhecemos bem. 

    Seu livro, meu confrade, é, numa palavra, afetuoso. 


 

domingo, 11 de outubro de 2020

Resposta do professor Olavo à minha pergunta na aula em direto do COF

 


       Ontem, 10 de outubro de 2020, durante a aula 537 do Curso Online de Filosofia, o professor Olavo gentilmente respondeu à minha pergunta. Segue a transcrição:

     "Vitor Marcolin: 'Professor, o que o senhor foi fazer na Romênia e qual a influência daquele país para a sua filosofia?'. Bom, aconteceu o seguinte: em... não lembro em que ano que foi (olha provavelmente para a dona Roxane e ela diz ao fundo: 1999) 1999 tinha uns camaradas querendo me matar, já estavam me seguindo até à porta de casa. E então o embaixador na Romênia, que era o Jerônimo Moscardo, ficou sabendo disso através, acho, de um amigo em comum que, aliás, era um Coronel do Exército. E mandou me convidar, me ofereceu um emprego no Instituto Brasil-Romênia. Eu falei 'uai!, não custa nada a gente ir pra lá, então nós fomos'. O emprego era uma chatice e eu me saí muito mal nele, porque tinha que ajudar as pessoas a vender produtos brasileiros lá e ia camarada vender novela da Globo. E daí que eu ia aconselhar o que para os romenos? Não compra essa porcaria, por favor! (risadas). Então, eu não era bem o funcionário ideal para ocupar aquele lugar. Mas, de qualquer modo, o período em que nós passamos lá foi muito proveitoso, pela primeira vez eu tive a ideia do que era um povo realmente culto. Na Romênia todo mundo fala três ou quatro línguas. 

    O mendigo vem até você pedir esmola, se você não o entende, ele fala em francês, você não entende, ele fala em inglês, você não entende, ele fala em alemão e aí, se você ainda não entender, ele fala em russo! É um povo muito culto, mas ao mesmo tempo é um país que foi destruído pelo regime comunista. Você vê ali que no centro de Bucareste, você tinha que o sujeito derrubava igrejas do século IX para construir no lugar edifícios do BNH. Quer dizer, o sujeito fez uma monstruosidade, não é? E também construiu para ele o maior prédio administrativo do mundo e, quando aquilo ficou pronto, a mulher olhou e disse: 'Eu quero um igual pra mim!' e ele então começou a construir um igual! É um negócio assim (coloca as mãos na cabeça)... é coisa de petista, você está entendendo? Só petista faz um negócio desses. O sujeito devastou a Romênia. No lugar onde a gente morava, o prédio era da nomenclatura dos funcionários, a parede era dessa largura assim (demonstra com os braços) e eu ia visitar os prédios dos operários, a parede era assim (demonstra com os dedos). Uma beleza, né? Também não podia ter aquecimento individual, o aquecimento tinha que ser para a cidade inteira. O aquecimento era tão bom que o calor não podia passar de oito graus centígrados no inverno... a devastação. Daí você entende... eu entendi por que o Ceauşescu (Chauchesku) tinha feito um prédio especial para exilados brasileiros. Não ficou um (risos), eles passaram um tempinho lá e depois foram embora para Paris. E assim por diante.

    Quer dizer, você conhecendo o resultado, os efeitos do Comunismo se prolongando para muito além da duração do regime... eles criaram problemas insolúveis que o melhor governo do mundo não conseguiria resolver. Né, fazer o quê? Daí também depois eu fui para a Polônia e, de certo modo era pior ainda, porque a Polônia, quando foi invadida pelos alemães por um lado e pelos russos pelo outro, os caras acabaram com Varsóvia, a cidade ficou no chão, não tinha mais prédios. E daí eles reconstruíram tudo na base do BNH soviético. Quer dizer, é uma cidade feia que dói. E os caras lá me diziam: 'Sabe quem manda aqui hoje? São os netos dos comunistas.' Quer dizer, é um negócio dinástico, hã?! É terrível... mas também foi muito bom pra mim visitar o Palácio Brankovank (?) onde eles usavam o jardim do palácio como depósito de estátuas das celebridades comunistas. Tinha lá Lênin, Stálin, Chauchesku todo mundo caído no chão, cheio de sujeira em cima (risos). Foi muito bom ver isso pelo menos, hã?! Saber que essas glórias não duram para sempre".


terça-feira, 6 de outubro de 2020

Novo achado






    Depois de algumas semanas sem experimentar a deliciosa sensação da poeira invadindo-me pelas ventas e me fazendo espirrar com a potência de um puro-sangue lusitano, voltei a visitar o alfarrabista Messias, na Sé. Para quem não é de São Paulo, o Sebo do Messias ostenta o título (marketeiro) do "maior sebo da América Latina". A propaganda, se não expressa toda a verdade, erra por pouco, pois, de fato, a loja de livros velhos é imensa e apresenta uma variedade e abrangência de temas que faz jus à quantidade faraônica de livros. É o paraíso dos bibliófilos! Sou um rato de biblioteca com um faro especializado: o que me atrai são os livros antigos, aqueles que não vêm somente com poeira e marcas do tempo, mas com anotações dos seus antigos donos, com os registros dos seus pensamentos. Com o passar do tempo, passei a notar que as anotações nos livros, feitas em qualquer época, seguem o mesmo padrão: primeiro, os donos têm a preocupação em se fazerem reconhecer como os legítimos senhores do livro, inscrevem seus nomes na contracapa como registro de posse; depois, com o fluir da leitura, vão salpicando as páginas com apontamentos de momento, ideias mais ou menos coerentes com o entendimento da narrativa; por fim, os orgulhosos leitores, numa derradeira e triunfal canetada, deixam registrado para o posteridade as datas do início e do fim da leitura do precioso objeto. São sinais de afeto, mais do que de mera atenção.  

    Hoje, vagando pelos corredores do Messias, encontrei um desses raros objetos que fazem os olhos brilharem e um sorriso de contentamento perdurar até a volta para casa, ao cair da noite, quando a memória começa a regurgitar os acontecimentos do dia só para fazer despertar o sorriso arrefecido. Tratava-se da oitava edição da novela portuguesa "As Pupillas do Sr. Reitor -- Chronica da Aldeia", de Julio Diniz, publicada em Lisboa no longínquo ano de 1898. Eu não conhecia a obra. E ainda não a conheço, pois não a li, o livro acabou de chegar. Mas, pelo que me revelaram as pesquisas rápidas pelas internets, a novela fez um sucesso considerável na época em que fora publicada, sob o formato dos famosos folhetins, em 1867. E depois, com o advento do cinema, a trama fora filmada em vários momentos durante o transcurso do século XX, até ganhar versões típicas das novelas da tevê. Virou telenovela. No Brasil, pelo menos duas emissoras a transmitiram: o SBT e a Record, sempre com picos de audiência. Ainda sob a autoridade de minha pesquisa rápida, soube que a narrativa se desenvolve em torno do regresso para uma pacata aldeia no interior de Portugal de um jovem que fora estudar medicina no Porto. Sua volta para o ambiente bucólico desperta paixões adormecidas. Lerei o livro procurando descobrir a forma como os ambientes do campo e da cidade foram apresentados, se a narrativa é propensa para um desses mundos. Enfim, é uma novela. 




Folha de rosto do livro. 
















Detalhe na folha de rosto com o local e ano de publicação: Lisboa, 1898. 
















Nesta página, o antigo dono do livro (presumo que seja um adolescente português ou francês que viveu, obviamente, entre o fin de siècle XIX e início do século XX), inscreve o seu nome, René Ehiollien, acompanhado de um desenho e a referência ao mês de fevereiro de 1901. Tudo muito bem acabado a bico de pena. 












Detalhe da página anterior. 

















Aqui o peralta desenhou uma mulher dançando can-can. É notória a influência francesa.
















 
E aqui ele escreve, como se não tivesse o diário à mão, um fato ordinário do seu dia, mas que teve tamanha importância que o fez registrar no livro que estava lendo: "Quinta-feira, 27 de Outubro de 1910. A Julia foi hoje embora. Almoçamos e jantamos no Lucas!".




E por fim, o senhor do livro deixa para a posteridade as datas do início e do término de sua leitura: "Terminei a leitura deste livro agora, às 11hs mais 20min da noite. Domingo, 4 de Dezembro de 1910." E completa mais uma vez como se seu diário estivesse distante ou, mais do que isso, quisesse fazer de um fato ordinário do seu cotidiano, parte da sua leitura, uma extensão desta: "Eu e Sylvinha fomos, durante o dia, à Comédia Francesa. René... Paris." 

Me pareceu que ele fez confusão com os anos de 1910 e 1901: no início, registra "1901" e, em alguns pontos do livro até o final, "1910". Talvez tenha sido uma pequena falta de atenção do nosso nobre leitor de novelas. Que achado! 















segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Soneto de Natal -- Olavo de Carvalho

 






Nasceste neste mundo sem sair do eterno
E para lá voltaste sem sair daqui.
Discursaste aos demônios no fundo do inferno
Sem nem descer do Trono que pertence a Ti. 

Ferido e mutilado no topo da Cruz, 
Resgatavas da morte eterna os Teus algozes,
Que ao pregar no madeiro duro os Teus pés nus,
Sorviam com delícia as Tuas dores atrozes.

Não perdeste nenhum dos que o Pai Te entregou,
Mesmo os que relutavam em seguir os Teus passos,
Sem saber que só em Ti podem dizer "Eu sou".

Salva-nos por Teus méritos, Encarnação
Do Verbo, pois os nossos são falsos e escassos
E nem para louvar-Te jamais bastarão. 



domingo, 4 de outubro de 2020

Mas era feita com muito esmero

  

*



    Num passado para sempre perdido, as casas, mesmo as das pessoas humildes, eram bonitas, tinham um estilo definido: expressavam harmonia numa formidável síntese entre inteligência e bom gosto. Hoje, porca miséria!, caminhar pelas ruas, seja nos centros históricos ou nos subúrbios das grandes cidades brasileiras é, quase necessariamente, sangrar pelos olhos. Os bárbaros conquistaram nossas moradas, tomando de assalto o símbolo máximo da vida familiar na urbe: nossas casas. Hoje, essas edificações não passam de um amontoado de tijolos numa estrutura disforme. Se antes havia a natural e necessária preocupação com a harmonia das construções, hoje, desgraçadamente, o simples conceito de beleza se perdeu. As pessoas esqueceram o belo, como se nunca o tivessem visto. E, claro, ele, o tinhoso, assume muitas formas e se passa por entendido de muitos temas. Desde os anos de 1960, pelo menos, o Brasil sofre com a intromissão do diabo: ele é arquiteto, alfaiate, gramático, jornalista, professor universitário, funcionário público, animador de tevê e, pasmem, político! 

    Vivo num município antiquíssimo da região metropolitana da capital paulista, uma cidade que fora fundada pelo próprio São José de Anchieta, na segunda metade do século XVI, durante uma missão catequética. No entanto, mesmo dona de um passado de glória, minha cidade jamais se desenvolveu. O máximo de beleza e harmonia urbana que há aqui são as casinhas dos anos de 1940/1950 construídas no centro e em alguns locais do subúrbio. Outrora, meu bairro fora uma região de fazendas e chácaras, em alguns pontos do quarteirão ainda resistem os antigos casarões. Infelizmente, quase a totalidade das construções antigas está em frangalhos. A beleza é a expressão objetiva de uma verdade elevada, transcendente, misteriosa. Perder esse referencial é perder grande parte do sentido da vida. Sem beleza, não há poesia, não há arte, não há a contemplação dos mistérios do cosmos, da vida e da morte. A estrutura urbana, deve, necessariamente, reproduzir parte dos anseios da alma humana, ora. Afinal, uma cidade é a habitação de seres humanos, criaturas detentoras do aparato cognitivo, não de macacos. 

    Esse problema é uma jabuticaba. Em outros rincões desse mundão de Adão, as coisas não acontecem assim. Nos Estados Unidos, por exemplo, mesmo nos bairros de subúrbio, nos quarteirões mais afastados dos centros dos condados, as casas e a estrutura geral do bairro não é decadente. Pelo contrário: a manutenção da ordem urbana é lei. Ouvi de um senhor brasileiro, meu professor de Filosofia, que vive no Estado da Virgínia há quase vinte anos: "A única coisa que você consegue fazer depois de descobrir que as casas americanas são exatamente como mostradas nos filmes de Hollywood é sorrir. Aqui, um brasileiro vive com um sorriso permanente no rosto, meu filho". 

    A perda do referencial da beleza e da harmonia urbana é apenas um dos fatores implicados por um problema maior e mais abrangente: a perda do senso histórico. Atualmente, levadas pelas sanhas ideológicas, as pessoas não têm mais a reverência para com o passado, para com a história da formação da sua própria nação. Arrebatam personagens da história dos seus séculos, das suas épocas, dos seus mundos e, à revelia da mentalidade da época, os trazem a juízo para a atualidade, para o crivo da ignorância e da superficialidade modernas. A burrice é sempre vista de braços entrelaçados com a maldade, a passeio. Quem, portanto, age assim, para além de asseverar a sua mais completa inépcia, avilta o quinto Mandamento, porque rompe com a tradição. Não fora somente o esmero das casas de outrora que se perdeu, o asseio para com a percepção da realidade também se foi. Agora, fechemos as janelas das nossas casas de subúrbio e tentemos dormir, a despeito do ronco estridente dos motores das motos, do falatório dos vizinhos sempre alertas e dos miados das gatas no cio. 

    * Casa do meu avô em Caraguatatuba, litoral Norte de São Paulo, onde passei momentos felizes da infância. 

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

A tragicomédia dos pitacos

 


    Não peça conselhos a quem não fez o que você quer fazer melhor do que você. A palavra "conselho", originada do latim, "consilium", designava o local onde os magistrados da pólis deliberavam sobre as mais importantes questões referentes à administração da comunidade. O conselho era a congregação dos juízes que, para exercer tal ofício, passavam pelo crivo da sabedoria, da prudência, do bom senso, do tino. Só se pede conselhos a quem sabe como fazer; a quem conquistou o domínio completo daquilo que também é objeto do seu interesse. Quem deseja ser advogado não pedirá o juízo de um jardineiro, porque não há garantias de que quem bem maneja o regador por cima das samambaias saberá manejar os critérios jurídicos de defesa ou de acusação perante um tribunal. 

    Ele é um jovem escritor, a quem deve pedir conselhos? Primeiro, aos grandes escritores, àqueles que elevaram o idioma aos píncaros da expressão da condição humana. Aos grandes mestres. Ele deve imitá-los, imitar os vários estilos diferentes. Com isso, o aspirante formará o seu próprio estilo, com este diálogo de vários estilos diante de si. Depois, o jovem escritor deve procurar bons escritores que lhe sejam contemporâneos, que lapidaram os seus estilos também através da assimilação dos grandes mestres. Um rapaz bondoso, mas ingênuo, que desejava muito tornar-se escritor, um escritor lido, comentado, referenciado, em suma, um escritor de sucesso, caiu na besteira de revelar esse seu sonho íntimo a um colega de trabalho, para quem pediu conselhos. O homem, que não escrevia e tampouco lia, começou por dizer, com ares de erudição, as mais disparatadas invencionices, com o intento de desiludir o aspirante do seu sonho. E, como a burrice anda de braços entrelaçados com a maldade, não eram conselhos que o homem dava, eram pitacos. 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Resenha de "Crime e Castigo" -- Dostoiévski

    


 

    Muito já se escreveu sobre a vida e a obra do escritor russo e, numa busca rápida pela internet, encontra-se uma quantidade abundante de resenhas dos seus romances. Este em especial, o do título desta resenha, é um dos principais objetos de interesse das análises de livros em blogs, sites e espaços de discussão sobre literatura nas redes sociais. Para dar a minha pobre contribuição, pobre, porque fui um leitor inconstante, tendo que dividir a atenção com leituras paralelas e, pior, nem sempre lendo no papel, mas na tela do computador ou do celular, decidi registrar essas reflexões. Eu não conhecia Dostoiévski antes de ler, aos 26 anos, seu romance, "Crime e Castigo". Antes, claro, ouvira falar de sua importância para a literatura; de seu pioneirismo em registrar, em palavras, as angústias da condição humana. Mas, só agora, depois de finalmente ler parte desse trabalho, descobri, ou pelo menos tive um vislumbre, da sua real importância. 

    No fundo, o homem é sempre o mesmo. Isso significa dizer que ele experimenta o sofrimento sempre da mesma forma: a tristeza, a solidão, o medo, a inveja, a angústia... Esses padecimentos da alma não evoluíram através de causas naturais, de causas biológicas como as espécies de Darwin; não surgiram através de meros processos físico-químicos entre os neurônios do cérebro. Não. O homem é sempre o mesmo. A coragem e a rebeldia de Ninrode (antigo herói da época pós-diluviana) não foram diferentes das de Napoleão; a contrição do rei David perante a Arca da Aliança não fora diferente da de Dom Afonso Henriques perante o vocativo da missão evangélica da nação que nascia sob o seu comando; as dores da vida e da morte do próprio Verbo Encarnado podem ser assimiladas por qualquer indivíduo em qualquer época. E aqui está o fascínio da literatura, porque ela é a representação da própria realidade: a possibilidade de exprimir os sentimentos do homem em todas as épocas e em todas as circunstâncias possíveis e imagináveis. Isso só poderia acontecer se o homem não mudasse; se, no seu íntimo compreendesse integralmente o que é sofrer. 

    Como eu disse no início, há incontáveis análises de "Crime e Castigo" pela internet afora. Cada uma apresenta um ou vários ângulos de perspectiva sobre a narrativa; cada resenha, por mais simplória, traz em si uma interpretação mais ou menos abrangente da obra. Limitei o meu esforço para o tema que, no progresso da leitura, melhor prendeu a minha atenção, impressionando-me profundamente: o sofrimento. Em "Crime e Castigo" todos sofrem. E sofre também o leitor. Não pude evitar: quando cheguei à cena do crime, tentei resistir, desviei os olhos da página por alguns momentos, franzi os sobrolhos, pressionei as mãos contra os olhos mas, tomando coragem, tornei à leitura. É assim que se deve ler os romances, sobretudo as grandes obras. Não com uma afetação meramente estética das emoções, mas a partir de um entendimento mais profundo do ato de ler: suspension of disbelief, suspensão da dúvida. Essa voluntária e momentânea suspensão da descrença é a forma eficiente de viver o romance, de experienciá-lo. 

    Rodion Românovitch Raskólnikov, o protagonista, é um estudante miserável. Decide abandonar os estudos, porque não mais pode se manter com o mirrado dinheiro que sua mãe, Pulkéria Alieksandrovna e sua irmã, Dúnia, com esforço heróico, enviam-lhe. Tudo o que lhe é possível, com os recursos de que dispõe, é honrar por tempo indeterminado as despesas da espelunca onde vive, em algum lugar insalubre de São Petersburgo. Esta é a situação inicial a partir da qual os dilemas morais serão apresentados ao jovem estudante pobre e desesperado. Dostoiévski expõe o aflito Ródia (diminutivo do seu primeiro nome) ao mais temível e perturbador dilema da sua vida: se Deus não existe, então tudo é permitido. Esse é o pano de fundo de toda a narrativa. Cada borborigmo de estômago, cada dor de cabeça, cada vertigem que o leva ao chão, cada dor lancinante que o deixa prostrado no esfarrapado sofá do cubículo imundo onde vive faz reverberar a questão dentro de si. Até que ele toma o caminho que o conduzirá ao castigo; até que ele se decide, portanto, pela experiência da negação. Ródia, diz "não" a Deus. 

    A história, publicada há 154 anos, é de todos conhecida. E mais, é também reconhecida. Nela está presente o drama da redenção. É, portanto, uma obra maior, do tipo que cativa os leitores para sempre. Há mais dois elementos do romance que atraíram a minha atenção: a personagem de Sônia Marmieládovna, a prostituta debutante e a família que, através da sua atividade indigna, ajuda a sustentar. E aqui há outro dos dilemas de Dostoiévski. Sônia é a personificação do amor. Não no sentido sexual, vulgar que seria próprio da sua atividade, mas no sentido do amor sacrificial; Sônia ama a família e acha que por ela todos os sacrifícios valem a pena. O pai é um bêbado contumaz, a mãe é tísica, a tuberculose a faz tingir de vermelho o lenço sempre que espirra, os irmãos, todos, famintos e participantes desta vida moribunda. Sônia não vê outra alternativa, os seus morrem de fome. 

   Toda aquela vergonha só a tocava de forma maquinal, pois a perversão não penetrava até sua alma. Raskólnikov via isso muito claramente. A moça conduziu o criminoso à redenção, ela o libertou. Há uma cena marcante, na qual Dostoiévski descreve ambos, o assassino, Raskólnikov e a prostituta, Sônia, sentados à roda d'uma mesinha no cubículo imundo desta. Eles leem o Evangelho segundo São João, a passagem na qual é relatada a ressurreição de Lázaro. Apesar de Ródia, no trecho, ainda expressar certa resistência, ambos comungam no cálice da esperança. Sentem que suas vidas têm um propósito maior, ainda que incomunicável, que têm beleza, ainda que violentada. Sônia cativou o coração de Raskólnikov e ele a amou. 

    "O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo". Fiódor Dostoiévski. 



  Alice se despede    Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seu...