sexta-feira, 29 de maio de 2020

Um achado


São Paulo, 31 de maio de 1929. 

Memórias pósthumas!... Título curioso, estranhável mesmo. Morrer para depois escrever memórias!... Tal cousa só podia nascer mesmo da imaginação de M. de Assis.
O seu Braz Cubas, embora tendo iniciado a nova vida que começava atraz da lagem do seu túmulo, não preferiu escrever a memória da sua vida entre os espíritos impalpáveis. Não, preferiu antes rememorar as cousas e factos deste mundo real. E não foi mau o gosto seu. Louvo-lhe a escolha. Fez o que todos nós fazemos com mais ou menos tempo. Somente divergiu um pouco por ter escrito as suas memórias. Outros, muitos outros, não vão tão adiante. Limitam-se somente a ter memórias. 
Não as deixam transparecer nítidas sobre o papel branco. Mas têm-nas gravadas no coração. E ali, não raro, uma página mais viva se salienta, um sucesso que para outros seria banal, uma data passada para muitos seu silêncio se evidencia com rigor e é recordada com insistência. 
Por ora, só uma data nos interessa. Bem sabes qual seja: o último dia do quinto mez do anno, o último dia do mez de maio. É uma rosa a mais que se abre com a innocente intenção de minorar a insipidez do universo entrante. 
Que se repita por muitas vezes e seja também o motivo de saudosas memórias.

                                                                                                                                          do Mario. 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Tipos humanos: César.



    Um homem robusto de cerca de 45 anos, 1,88cm de altura, de braços e pernas grossos e sem o dente pré-molar inferior esquerdo. Este é César. O detalhe do dente jamais é visto pelos que não são seus amigos ou, pelo menos, não levam uma mínima estima do grandalhão, porque ele não sorri para estranhos. César parece ser um homem de poucos amigos, mas engana-se quem, à primeira vista, crê que estabelecer um diálogo lúdico com o homem seja uma proeza irrealizável. No seu trabalho, ele costuma ser não gentil, mas camarada com os colegas, falando palavrões sem sombra de pudor e gargalhando alto de suas próprias piadas e causos. Como técnico em radiologia de um grande hospital paulistano, ele leva a vida a aproveitar das benesses que sua profissão lhe dá: trabalha apenas nas quartas e nas quintas, os outros dias da semana, entretanto, ele os ocupa com qualquer outra atividade que não seja o trabalho, como andar de bicicleta no parque do Ibirapuera.  


    Eu o conheci no dia em que cheguei ao hospital com uma carta de recomendação para ocupar uma vaga não remunerada na condição de estagiário de radiologia. Não sei se foi pelo fato d'eu ser tão ou mais alto do que ele, ou porque eu usava palavras e formalismos incomuns para me apresentar, mas, na primeira vez que o vi, César sorriu. Foi impossível não notar a falta de um de seus dentes na mandíbula do lado esquerdo, o pré-molar. Mas, acho que ele sorriu mesmo porque eu chegara com uma hora de antecedência. Isso foi proposital, pois no meu primeiro dia como estagiário, eu queria mostrar trabalho. Em sua companhia havia uma mulher que também era técnica em raio-X, seu nome era Roberta e ela não parecia estar de bom humor. Mais tarde, descobri que ela nunca estava de bom humor, talvez porque, a dois anos da aposentadoria e no pico da menopausa, ela já estava desistindo de manter aquela boa disposição para fazer as coisas ordinárias do cotidiano. Imagino que para pessoas nessa fase da vida, toda a lógica da boa convivência se desfaz, porque não há mais necessidade ou porque elas assim pensam. Uma pena. 


    "Vem cá, filhão", disse César me conduzindo até uma sala próxima onde eu poderia guardar minhas coisas e me trocar. Depois de vestir o jaleco e jogar para dentro de um de seus enormes bolsos um club social, um manual de bolso de posicionamento radiológico e uma caneta preta, saí para ir de encontro a ele rapidamente. Na sala onde os técnicos ficavam não havia porta, porque era necessário ver de imediato os pacientes que, munidos da solicitação do exame de raio-X assinada pelo médico, sentavam-se nas cerca de dez cadeiras afixadas no corredor, de frente para a sala onde os técnicos estavam. Eles, por sua vez, assim que viam algum paciente, levantavam-se de suas cadeiras, jogavam para dentro do bolso do jaleco o celular e, depois de ler a solicitação do exame que o paciente entregara, o conduzia para uma das salas de raio-X, onde os exames eram realizados. Nas adjacências do corredor, haviam duas salas de raio-X convencional, uma sala de raio-X odontológico, uma sala de tomografia computadorizada e outra de ressonância magnética. Nunca vi os técnicos operando outra coisa ali, senão o raio-X convencional. Isso me trouxe certo alívio, porque, na condição de estagiário, queria começar pelas coisas mais simples.  


    César me fazia perguntas sem importância enquanto olhava fixamente para a tela do computador da máquina que coletava as imagens das radiografias e as enviava, via sistema, para o computador do médico que solicitara o exame. Aquele era um método muito eficiente de processar as imagens. Durante as aulas, eu estudara os métodos antigos de processamento da imagem radiográfica: antes do advento das novas tecnologias, os técnicos revelavam as radiografias como os antigos fotógrafos faziam com suas fotos, na câmara escura. Se, por descuido do técnico, o paciente se mexesse e a região anatômica de interesse saísse do foco, o exame teria de ser refeito, o que iria expor o paciente a outra dose de radiação.  


    César me perguntou se eu estava preparado para fazer os exames. Eu respondi que ainda não, porque queria inicialmente apenas observar como ele e a outra técnica, Roberta, faziam. Permaneci, como um animal amestrado, no seu pé durante todo o transcurso das minhas quatro horas de estágio. César sorria, ele achava mesmo tudo engraçado. Acho que gostou de mim. Ele se dirigia com certa aspereza para os pacientes, sobretudo para aqueles que não sabiam se comportar como o orientado. Mas, para mim ele era solícito e procurava me tranquilizar sobre tudo, porque, na insegurança típica de estagiário, eu pedia perdão por qualquer erro bobo que cometia. Se César ria da situação e procurava, com verdadeira bondade, me tranquilizar, sua colega, Roberta, dava ensejo para o seu mal humor e saía da sala esbaforida sempre que ouvia de mim um "desculpe, foi um erro."  


    Caminhando ao seu lado, percebi que eu era um pouco mais alto do que ele. César tinha 1,88cm e eu, 1,93cm. Todos os funcionários do hospital que nos viam, enfermeiros, faxineiros, médicos ou os nossos camaradas técnicos em radiologia, ficavam pasmos ao ver dois homens imensos caminhando e conversando sobre filmes western, literatura clássica, política, cultura, livros e polêmicas históricas das mais cabeludas pelos corredores. Descobri sua personalidade peculiar expressa por essas suas preferências tão rápido quanto descobri sua carência do pré-molar inferior esquerdo. Acho que ele ficou extremamente feliz em descobrir que, depois de ser tutor de tantos estagiários desinteressantes, desinteligentes e até malcriados, teria a oportunidade de ter em sua companhia alguém como eu, que partilhava com ele a mesma cosmovisão.  


    Foi fácil pegar o jeito de realizar os exames, porque, como o hospital era um instituto de cardiologia, não havia solicitação de radiografias que não fossem do tórax, em duas posições: póstero-anterior e perfil. Esses eram os exames mais fáceis estudados em sala de aula. Acho que tive sorte, pois, com esse campo limitado de exames para fazer, eu tinha a oportunidade de estudá-los à exaustão, de modo que, em pouquíssimo tempo, pudesse dominá-los por completo. E foi exatamente o que fiz. Meus dias de estágio eram os mesmos do plantão do César, por isso eu o via sempre. Mas, às vezes, outro técnico me pedia para radiografar, o que eu jamais negava fazer. Em algumas ocasiões, a Roberta me permitia realizar alguns exames, no início eu errava com frequência, mas, já na semana seguinte e porque eu sempre revisava as especificações técnicas dos exames e tomava nota de todos os conselhos e macetes que os técnicos me passavam, eu os fazia perfeitamente. Isso, é claro, fez com que a Roberta e os outros técnicos depositassem cada vez mais confiança em mim.  


    Além do César, dois outros técnicos foram muito solícitos comigo e eu tratei logo de me mostrar prestativo para com eles. Celso era um veterano, assim como a Roberta, estava a um ou dois anos da aposentadoria. Era o mais velho dos profissionais do setor de radiologia e o mais prestativo. Eu fazia questão de anotar seus conselhos e de ouvir atentamente suas conversas. É impressionante a quantidade de informações que se pode obter sobre a vida de uma pessoa apenas ouvindo suas conversas. Eu não fazia por mal, é claro, mas não iria tapar os ouvidos sempre que me via na roda dos técnicos e cada qual começava a contar toda sorte de particularidades sobre sua vida pessoal e profissional. Ouvindo uma dessas conversas que o Celso tivera com outro técnico, eu soube que ele fora lesado por uma empresa, acho que fora uma clínica de radiologia, em dez anos. Isto é, teria de trabalhar mais dez anos para conseguir se aposentar. E faltava pouco mais de um ano. Ou seja, o Celso tinha mais de trinta anos de experiência como técnico em radiologia! Ele morava no litoral sul de São Paulo, no município de Praia Grande e subia a serra para assumir seu plantão, aos fins de semana. Eventualmente, ele aparecia no hospital em outros dias da semana também, embora tivesse plantão fixado aos sábados e domingos. Eram nestas ocasiões em que eu o via.  


    Além da Roberta, só havia outro técnico mulher no setor: Daniela Medina. Ela era uma mulher bonita, tinha olhos cor de amêndoas, o cabelo louro bronzeado e, apesar de aparentar já ter passado dos trinta e cinco, ainda conservava algumas curvas. Mas, haviam dois detalhes em sua compleição que a faziam perder pontos na minha avaliação subjetiva do que considero uma filha de Vênus: a Daniela tinha o timbre de sua voz desagradavelmente grave e um comportamento impulsivo que, somado ao vozeirão, não a permitiu receber minha classificação de uma mulher perfeita, no sentido de equilibrada. Sua beleza era manca. Ela falava palavrões sem pensar e vivia no celular. Mas, gostei dela, porque me dava conselhos valiosos que foram para o meu caderno de notas. E, assim como a maioria das pessoas ali -- e eu não sei o porquê de fazerem isso -- me contava de sua vida. Tinha dois filhos e um marido que estava se arriscando ao empreender um negócio de marketing digital; eles já prospectaram se mudar para o Canadá, mas o plano não vingou por mil motivos, decidiram adiar a mudança. Contanto que permanecesse em silêncio, sua presença poderia ser muito agradável. Fiz várias incursões pelos corredores do hospital na sua companhia, a Daniela insistia em levar o pesado equipamento de raio-X portátil até os leitos onde os pacientes aguardavam para fazer os exames. Isso me aborrecia, pois, na condição de homem forte, queria levar o equipamento eu mesmo, até para me mostrar prestativo. Acho que não foi difícil imaginar o que se passava na cabeça dos médicos e enfermeiros que nos viam caminhando pelos corredores assim: ela empurrando o equipamento pesado e eu ao seu lado, caminhando tranquilamente.  


    Mais tarde, a Daniela dissera evitar que os estagiários levassem o equipamento portátil, porque, não há muito tempo, um rapaz desastrado provocou um acidente e a culpa, claro, recaíra sobre o técnico responsável pelo grumete, ela. César era muito diferente, logo no início de minha estadia ali, não só permitiu que eu conduzisse os pacientes até a sala dos exames, mas que fizesse, eu mesmo, os exames; claro, sob a sua supervisão. Ao lado de César, pelos corredores, eu estava autorizado a, não só conduzir o carrinho do equipamento portátil, mas também a ajustá-lo no leito do paciente. O Celso também tinha mais confiança em mim, permitindo até que eu calibrasse o equipamento com a dosagem que eu escolhera de acordo com as características do paciente.  


    Nos intervalos entre os atendimentos dos pacientes, César, que era melhor gozador do que piadista, me contava as histórias mais estranhas e improváveis que eu já tivera a chance de ouvir. Não considero que as pessoas que riem de suas próprias piadas sejam más piadistas, pelo contrário, se uma pessoa ri com verdadeira efusividade de sua própria anedota, é sinal claro de que a piada é boa. Para além de ser chalaça, César era um excelente narrador dos eventos históricos nos quais membros de sua família estiveram envolvidos. Um dia, sem esperar, fui surpreendido pela história de seu bisavô que fora veterano na Guerra do Paraguai e que ele, César, conservava consigo uma abotoadura de ouro que pertencera a seu ancestral belicoso e inúmeros outros objetos da época do conflito. "Meu bisavô tinha de devolver todos os objetos emprestados a ele pelo Império depois da guerra, tudo, o rifle de fabricação holandesa, as botas, o quepe, o agasalho," disse ele, "mas, como meu bisavô não era bobo, deu um jeito de esconder aquela abotoadura de ouro para levar para minha bisavó," completou. 


    Ele também era amante dos livros. Soube que mantinha em sua casa uma coleção rara das obras completas de Júlio Verne e de Charles Dickens. Fico pensando: no cotidiano, as pessoas dão demasiada importância a coisas que não merecem importância, porque não têm. Quem, dentre os camaradas de labuta do César tinha conhecimento dessas particularidades de sua vida? Permaneci como estagiário naquele hospital por vários meses, mas nunca ouvi ninguém comentando esses aspectos da vida do César. Fiquei intrigado, mas fora o próprio chalaça que jogara a pulga atrás da minha orelha que me esclareceu a situação: "Sabe, filhão", disse ele, "eu gosto de conversar com você, porque percebo que você é diferente das outras pessoas que vêm aqui. Você gosta de estudar, de ler, de conversar sobre temas interessantes; você não é do tipo que perde tempo." Em todas as ocasiões em que eu vira César conversando com qualquer outro técnico do setor, percebi que os assuntos não gravitavam para longe dos temas banais ou maçantes do trabalho: reclamações, fofocas ou qualquer outro assunto que, se não tinha o teor de inveja, o tinha de maledicência. Nessas conversas desagradáveis César tinha sempre, como interlocutor, a Roberta. 


    Acho que eu levaria alguns anos para descobrir o quão bom é o filme "The Good, The Bad and The Ugly", do grande Sergio Leone, se meu companheiro de conversas edificantes não tivesse narrado -- mais de três vezes -- as cenas que julgou icônicas. E novamente, lá estava o espaço do pré-molar inferior esquerdo à mostra, porque o homem, enquanto narrava as peripécias do "feio" no filme, dava gargalhadas tão autênticas que eu me espantava em perceber que ninguém mais a nossa volta se dava conta do universo inabarcável que era César. Soube também que, antes de estudar na mesma instituição que eu, no metrô Saúde, e de se tornar técnico em radiologia, ele fora açougueiro. Morava com a mãe e a irmã numa casa próximo ao parque do Ibirapuera onde, nos seus dias de folgas, cinco por semana, passeava de bicicleta. Tinha também um tio, figura excêntrica, que era geólogo; referência de tal ciência no Brasil. Tanto que fora convidado para integrar uma equipe de geólogos brasileiros numa conferência na Suíça. Esse seu tio era o seu ídolo, seu modelo de vida. "Sabe, filhão," disse, "meu tio é meu maior exemplo, ele é intelectual assim como você. Ele parece Jesus Christo, tem os olhos azuis e os cabelos longos, assim, sabe?"


    Muitas outras anedotas sobre sua vida ele me contou. Estava sempre com um assunto interessante e, assim que me via, tratava de me deixar a par de suas reflexões. Um dia, porém, quando cheguei para mais um plantão de estagiário, soube que meu amigo, César, fora demitido; os burburinhos que ouvi falavam qualquer coisa sobre uma discussão entre ele e a Roberta e de uma denúncia de agressão. Os técnicos em radiologia e os outros funcionários do hospital que conheciam o César, pareciam estar divididos quanto à verossimilhança da versão dada pela Roberta. Diziam que fora por pura inveja que ela armara para o nosso amigo. Bem, o fato é que ele nunca mais foi visto no hospital e o teor da sua versão dada para a chefia do setor nunca chegou aos meus ouvidos. A verdade é que todos ali tramaram para que César fosse demitido. Numa tarde, próximo do cair da noite, quando eu estava de saída do hospital no meu último dia de estágio, caminhei, como de costume, subindo a avenida Rodrigues Alves até chegar à estação Ana Rosa. Antes de desaparecer no subterrâneo da estação, tive a impressão de ter visto um homem semelhante ao César ali pelas adjacências da entrada da estação. Não fui atrás para confirmar, o que eu lamentei depois, porque lembrei que ali, na entrada da estação, havia um açougue. 

terça-feira, 26 de maio de 2020

Conto: Pele e Osso.



      "Escute, você vai morrer. Antes, muito antes do que pensas, estarás morta, como o cão que você, por pura maldade, deixou definhar até sucumbir. Desgraçada!". Era isso o que dizia o bilhete que o filho da mulher apanhara no chão, próximo à porta, pela manhã, quando saía para comprar pão. O café desta manhã não saiu. A mulher e o casal de filhos ficaram, até que seus estômagos os impelissem a buscar qualquer coisa para substituir os pães que não chegaram, sentados à roda da pequena mesa, lendo e relendo as malditas palavras que despertaram, em todos, medo e preocupação. Mas, na consciência da matriarca, as palavras do bilhete despertaram também certo conformismo, como se fossem a mensagem de uma justa sentença. A menina era cega. O menino, quando primeiro leu a mensagem funesta, omitiu, por respeito à mãe, a última palavra, lendo-a para si, baixinho. Ele, apesar da pouca idade, tinha consciência de que, fatalmente, sua mãe um dia morreria, sabia também, embora não ousasse dizer, que ela era má; mas não admitia ser ela desgraçada. Esta fora, aliás, a última palavra que seu pai, antes de os abandonar, dissera à sua mãe, numa briga derradeira e, por isso, tal palavra ficou guardada na memória do pequeno como a expressão máxima de uma coisa ruim. A pequena família, desde então, vivia dos óbolos estatais.  


     Viviam numa casa pequena, com pouco esmero, numa rua sem saída de um bairro de subúrbio. Esta casa fora deixada pelo avô para os pequenos, como herança. O velho morrera por complicações cardíacas decorrentes, segundo a nora dizia para os vizinhos, das constantes desavenças com o filho. Desde que o marido a abandonara, a mulher vivia com os filhos e dois pequenos cães. Não se passaram três meses desde a partida do marido para que a mulher, amargurada, caísse numa profunda e devastadora depressão. Uma crise de melancolia, como diria seu sogro se estivesse vivo. Não viviam gozando de fartura, mas também não passavam necessidades; o menino, aliás, aparentava até estar engordando. As crianças tinham a responsabilidade de cuidar dos animais, porque a mãe, desde que ficara doente, não se importava mais com eles. Mas, dando mostras de um comportamento doentio, a mulher estranhamente irritava-se quando as crianças tinham de dar comida para um dos cães. Era o cachorro do marido.  


      O bichinho era mantido numa curta corrente enferrujada, presa a um gancho de ferro debaixo de uma estrutura de tijolos que sustentava a caixa d'água da casa. O único sinal aparente de conforto que o cãozinho dispunha, era um colchão velho colocado debaixo do reservatório de água que, com as intempéries do clima, estava ora encharcado, ora infestado por pulgas e toda sorte de insetos que se alimentavam de sangue e, para isso, mantinham abertas as pequenas feridas no corpo da vítima. A sujeira não era constante, era crescente. A mulher deu ordens aos filhos para o deixar padecer lá em cima, na laje da casa, de modo que os latidos da pobre criatura que, com o tempo, iam ficando cada vez mais fracos e imperceptíveis, não a impedissem de ouvir claramente os diálogos da sua novela. 


    O outro cão era criado sem coleiras, corria, livre, por toda a extensão do pequeno terreno, subindo, aos saltos, até a laje, onde jazia às mínguas seu companheiro de outrora. Era gordo, porque o serviam com fartura. E, de tanto receber comida assim, em abundância, adquiriu o péssimo hábito de, no instante em que via cair uma lasca de carne, um pedaço de pão velho, já endurecido pela passagem da noite, ou um trunfo qualquer de comida próximo ao cãozinho acorrentado, de um salto, abocanhava o alimento antes que o animal suplicante pudesse, com esforço heroico, levantar-se do seu leito imundo e, bambo das pernas, tentar recolher sua porção. Com o avançar dos dias, contudo, não era raro vê-lo desistir de levantar-se, tamanha era a fraqueza que o consumia, pouco a pouco. Os vizinhos diziam, ao ver o pobrezinho morrendo de fome, que, no instante em que ele os via, só faltava pedir.


    Na semana que antecedeu a sua morte, o pelo que cobria seu corpo era tão escasso que, para quem o via agora, a criatura desgraçada parecia não ter pelos. Os sinais vitais da sua respiração, vistos através do fraco movimento do seu tórax, anunciavam uma morte lenta e dolorosa. As silhuetas das suas costelas eram tão nítidas que podiam ser contadas por uma criança cega. Na noite anterior à sua manhã derradeira, ele foi assolado por mais um ato de maldade. A mulher, que raramente subia até a laje da casa, decidiu, acompanhada do filho, fazer uma limpeza no lugar. Acabara de anoitecer. Estava frio. Primeiro, a megera ordenou ao filho para que afastasse as velharias que cobriam grande parte da extensão do piso, de modo que eles pudessem lavar o chão sem impedimento. Depois, vieram com a água.  


     Conectaram uma mangueira velha num bocal instalado entre os registros do reservatório de água, logo acima onde jazia o cãozinho em seus últimos momentos de sua existência sofrida. Como o encaixe entre a mangueira e o bocal custava a se firmar, a mulher, áspera, rude, bruta, praguejando o filho, a caixa d'água, a mangueira, a noite, o frio, o mundo, ordenou ao menino que se afastasse e, num esforço para solucionar o problema, pisou, sem querer, nas costelas do cachorro que estava deitado, logo abaixo. Estava escuro e, como dias inteiros transcorreram sem que ninguém ouvisse os latidos mirrados do animal, esqueceram-se dele; a mulher, pelo menos, esqueceu-se por completo. A pisada fora de uma brutalidade tremenda, fora mais um chute no chão na tentativa de aliviar sua raiva e dar uma expressão material às pragas que, constantemente, rogava.  


    O cãozinho, que começava a se encaminhar para a passagem tênue entre a vida e a morte, teve que voltar, subitamente, porque seu fio de prata, se é que os animais os têm, ainda não se rompera. O golpe nas costelas provocara uma dor lancinante, a última, contudo, que a pobre criatura sentiu. Latiu alto, contorcendo-se ali, deitado no colchão imundo. Tudo fora muito rápido. Como a mulher mantinha o pé próximo do cão, o animal, num último esforço de vingança, cravou seus dentes na panturrilha do seu algoz que, de um movimento brusco, o puxou para longe da caixa d'água. Na medida em que se afastava, trazia consigo o cão preso à sua panturrilha. A curta corrente que prendia o animalzinho tensionou ao máximo. A mulher caiu. "Peste!", gritou, "rápido, moleque, me traga aquele pedaço de pau, que eu quero dar na cabeça desse maldito!". O filho obedeceu, não tinha escolha, se sua mãe não tivesse o gosto de golpear o bichinho infeliz, seria nele, em seu filho, que o faria. Ele sabia que, de qualquer forma, sua mãe teria sua vingança.  


    Não fora preciso mais do que dois golpes. A mulher conseguira, afinal, ligar a mangueira. Lavou o sangue de sua panturrilha, rasgou um pequeno pedaço do tecido do camisolão que vestia e o amarrou em torno da ferida. Depois, com a mangueira jorrando água com pouca pressão, lavou, com a ajuda do seu filho, toda a laje. Quarenta minutos depois, desceram, deixando sobre o colchão encharcado debaixo da caixa d'água, o cão agonizante que morreria pela manhã. Só perceberam que o cão morrera quatro dias depois, quando o cheiro pútedro que emanava da laje tornou-se perceptível. A mulher, que tinha seu filho fiel sempre ao seu lado, ordenou para que colocassem os restos mortais do animal, com o auxílio de uma pá, numa caixa de madeira que jazia lá pelas adjacências. Levaram-no até um terreno baldio, onde, sem nenhum movimento que lembrasse os rudimentos de uma cerimônia, o deixaram.  


     A mulher morreu dois meses depois, amordaçada na cama de um hospital psiquiátrico. Os filhos foram para a casa de um parente, no sul. Dizem, aqueles que estiveram com ela em seus momentos derradeiros, que a mulher relatava ter estranhas visões: o espectro de um homem, dizia frequentemente, a visitava todas as noites, tendo nos braços o cadáver de um cachorro. As enfermeiras que fizeram o inventário de rotina no quarto onde a mulher encontrou a morte, registraram que, embaixo do travesseiro da paciente havia um pequeno bilhete que dizia qualquer coisa no tom de uma ameaça de morte e que, como transcreveram nos registros, terminava com a palavra: "Desgraçada!".  

     

Conto: Ellen.



    Seus seios arfavam num compasso irregular e, da sua fronte parda, o suor escorria abundante até o limiar dos seus lábios onde, num movimento sensual, era acolhido por sua língua e desaparecia na umidade infinita do seu corpo. Sob o sol impiedoso do sertão da Bahia, a jovem Ellen caminhava confiante, quase prazenteira, a subir a ladeira com aquele livro, úmido pelo suor que vertia do seu corpo, numa das mãos. Ao chegar à biblioteca municipal, foi de imediato reconhecida por Diógenes, seu vizinho que também era o responsável pela dispensação dos livros. Depois de preencher a ficha da devolução, Ellen decidiu caminhar por entre as poucas prateleiras que haviam no recinto, porque, localizada entre os rincões mais ermos que os ribeirinhos do São Francisco conheciam, o vilarejo onde Ellen morava não tinha, aos olhos da providência dos recursos, elevação para receber uma biblioteca que fosse disposta com mais de meia dúzia de prateleiras. 

    Enquanto a bela cabocla procurava por uma nova leitura, os olhos de Diógenes, famintos pelas sinuosidades que compunham a silhueta do seu corpo, brilhavam ao contemplá-la. Ellen tinha consciência de estar sendo observada, desejada, desenhada nos pensamentos daquele rapaz fascinado. Ela sorria. A verdade era que aquela mocinha do sertão tinha incrustado na sua personalidade a força de uma inteligência que fora, pouco a pouco, lapidada nos moldes das suas muitas leituras. Ellen era uma das poucas almas daquele sertão que havia, à custa de não muito esforço, porque tinha a mente afiada, dominado a arte de ler. Para ela, seu hábito se revestia dos mistérios do outro mundo; daqueles mesmos mistérios que inflam as velas dos corações ao singrar pelos mares do drama da existência. Sua última leitura, esta que a fez subir a ladeira sorrindo e suando, fora Madame Bovary, de Gustave Flaubert. 

     Ellen saiu da biblioteca carregando um livro, vê-la assim era tão comum quanto observar os sorrisos e as expressões de contentamento que traduziam esperança nos rostos dos habitantes do vilarejo depois que chovia. Os olhos de Diógenes a viram ir embora, eles a acompanharam até que a encruzilhada que põe fim à ladeira a fizesse desaparecer ao dobrar à esquerda. 

    As casas de Diógenes e de Ellen partilhavam o mesmo jardim, ou, numa descrição mais fidedigna à realidade do sertão, o espaço irregular de terra batida onde, entre os cacarejos, berros e mugidos dos animais, ambos brincavam quando crianças. Havia também um celeiro e um poço. Este era partilhado pelas duas famílias das casas vizinhas, aquele foi o local no qual Ellen testemunhou a força da cadência dos movimentos que geram, por milagre, a vida. A bela Ellen e seu amigo Diógenes tinham quase a mesma idade quando, há alguns anos, entre a passagem da infância para a adolescência, o garoto a levou até o celeiro com o pretexto de mostrar-lhe uma coisa curiosa. 

    Depois desse dia, Diógenes nunca mais se veria na presença de Ellen sem timidez ou um mal estar que desperta nele uma estranheza, misto de pavor e fascinação. Mesmo quando ele tem que preencher os papéis com os dados dos livros que Ellen pega na biblioteca, o faz com pressa, afobação e celeridade, mas, quando ela se vai, os olhos do rapaz não resistem a acompanhá-la e assim o fazem até perdê-la para um obstáculo intransponível às suas retinas, como a esquina no fim da ladeira. 

    É claro que a moça ainda conserva na memória o que viu no celeiro naquele longínquo dia da sua infância em que Diógenes a chamou para lá. Ellen se recorda da visão dos cavalos, de sentir a terra tremendo, de ouvir o relinchar dos animais esbaforidos, de sentir o cheiro do celeiro. Diógenes estava ao seu lado, ele dizia que era desse modo que a égua ficava prenha para depois parir quando, de súbito, seu pai entrou no recinto e, aos gritos, os expulsou de lá. Ela aprendeu muito com os livros que leu, mas nunca soube explicar para si mesma o porquê de Diógenes nunca mais, desde aquele dia, agir naturalmente em sua presença; ela lamentou perder sua amizade de uma forma tão inexplicável. 

    Naquela noite, depois de se banhar e se recolher no pequeno quarto, Ellen foi para a janela, onde a lua derramava a sua luz. Na mesinha ao lado de sua cama, jazia, na penumbra, o livro que a moça trouxera consigo da biblioteca, era Madame Bovary. 

  

Conto: Ovo Fabergé.



    "Obrigada, é lindo, Tomás!", disse Gabriela. Ela era uma adolescente que usava óculos e vestidos que destoavam das calças jeans e dos piercings das colegas e que vivia sempre entre os livros empoeirados da biblioteca. Tomás não sabia discernir o que sentia por ela: não sabia se a amava ou se estava mesmo apaixonado. "É seu, Gabriela, porque a admiro muito". Foi o que ele disse depois de entregar o presente que comprara na véspera. Era o aniversário de Gabriela. Tomás havia comprado um ovo Fabergé salpicado de brilhantes azuis, rosas e violetas. Ele sabia que se tratava de uma réplica, porque pagou uma ninharia por ele no antiquário, além do que, como explicara o excêntrico vendedor, era uma réplica barata. Mas, mesmo assim, tratava-se de uma antiguidade e Tomás sabia que sua amiga, Gabriela, gostava de presentes desse tipo.

    Tomás e Gabriela estavam conversando num dos bancos da praça central do campus da universidade, numa ala batizada pelos alunos de "Calçada Gozosa". A origem desse nome curioso pode ser conhecida através dos sentidos, um, em especial: o olfato. Porque essa parte da praça era arborizada com toda sorte de árvores que exalavam perfumes e canteiros de flores de aromas dos mais variados, os alunos, jovens criativos e complacentes com as insinuações que seus instintos despertavam em si, assim a denominaram. Fazia calor e, estranhamente, ventava. Talvez fosse um prenúncio da chuva torrencial que, a julgar pela constância do vento, cairia mais tarde. Das árvores despregavam-se folhas e flores que iam cair nas redondezas e por cima dos jovens enamorados.

    "Tenho que ir agora, Tomás, a primeira aula do curso livre já vai começar". Gabriela era estudante do curso de Letras e, naquele semestre, entre as opções disponíveis na grade para cursos livres, escolheu as polêmicas e concorridas aulas do professor Carlos: Literatura Erótica. Tomás não conseguia imaginar de onde sua amiga, sempre tão tímida, tirava coragem para participar de coisas assim. "Até mais tarde e obrigada, novamente, pelo presente". Ele também tinha as suas obrigações de estudante, levantou e se pôs a caminhar em direção ao prédio da biblioteca, inebriado pela imagem de Gabriela e pelo cheiro das flores.

    Gabriela estava esperando por Tomás na praça, no mesmo banco. O moço demorou, porque esteve perdido em devaneios na biblioteca. Tomás tinha a grata sorte de compor aquela parcela ínfima dos estudantes que têm quem os banque. Ele morava num apartamento próximo ao campus da universidade que fora alugado por seus pais, tudo o que ele tinha que fazer, como instruiu sua mãe, era mantê-lo limpo, organizado e livre de visitas perniciosas. "Gabriela, quero que venha jantar na minha casa hoje. Vamos?". "Não sei, Tomás, fiquei de escrever um conto para o professor Carlos hoje, tenho que enviá-lo por e-mail". "O quê?!", disse Tomás num sobressalto, "você vai escrever um conto erótico para aquele velho safado, Gabriela?". "Não exatamente. É um modelo, material para estudo; o professor quer saber se consigo manejar os diversos símbolos que compõem a trama. Não é nada demais, Tomás".

    "Então eu quero te ajudar", disse ele. Gabriela sorriu com malícia e dissimulou pensar a respeito: "Pode ser". Agora, ambos se puseram a caminhar pelo campus, atravessaram a praça central como um casal de amantes fugidio. Pareciam caminhar também em pensamentos, tanto que levaram algum tempo para perceber que a tempestade iminente havia chegado. Despertaram com um trovão e puseram-se a correr.

    Apesar de o apartamento de Tomás se localizar do outro lado da avenida que margeia o campus universitário, a chuva inclemente os deixou ensopados até os ossos. Não chovia assim há muitos dias, apesar de estarem em pleno verão. Ambos correram até se abrigar no hall do prédio de apartamentos onde permaneceram, por alguns instantes, observando a tempestade castigar as árvores e os transeuntes que, como eles, tiveram que correr da chuva. Tomás e Gabriela viram, na composição desse quadro de aspecto terrível, que, dos jardins do campus saíam a correr, fustigados pela tempestade implacável, casais de namorados ou amantes fugidios também. A chuva caía sobre tudo e todos.

    "Vamos subir", disse Gabriela, e se pôs na frente. De súbito, um vento impetuoso invadiu o corredor de escadas do apartamento e levantou o vestido da moça. Tudo ficou à vista do impressionado Tomás que não tentou disfarçar o espanto e o contentamento com que recebeu, grato, o presente das forças da natureza. Durou apenas alguns segundos, mas o rapaz pôde contemplar toda a brancura que se revelava desde a panturrilha até os quadris da garota. Ambos estavam molhados, mas, em Gabriela, a água ganhava um sentido a mais; assumia os contornos de uma substância diferente, um misto de um licor do paraíso que se apresenta com aspectos deste e do outro mundo. Olhar as pernas e coxas nuas de Gabriela era como observar os detalhes das pérolas cor de pêssego encontradas no interior das ostras no fundo de algum coral esquecido. Para Tomás, as gotículas de água no corpo molhado de Gabriela eram as desejáveis pérolas que ele ameaçou colher. Enfim, os poucos segundos se passaram pondo termo ao devaneio do rapaz: "Anda logo, Tomás, estou congelando aqui", disse Gabriela.

    Ao entrarem no apartamento, Tomás dirigiu-se de imediato ao banheiro de onde voltou com duas toalhas nas mãos. "Aqui, Gabriela. Você não quer tomar um banho?", disse ele. "Ah, como você é gentil, Tomás". Gabriela, levada pelas circunstâncias adversas ocasionadas pela tempestade, pela adrenalina de estar ali, sozinha, com um garoto num apartamento nos entornos da universidade, pela pressão de estar sendo cobrada a escrever um conto erótico para um professor e, sobretudo, pela sua natureza maliciosa e dissimulada, não se atentou ao fato de que, ali, na casa de Tomás, não havia roupas que ela pudesse usar para se trocar. Esta foi a única situação neste dia incomum que a obliquidade do seu caráter feminino não conseguiu perscrutar. Tomás, depois de usar uma das toalhas para se secar, sentou-se no sofá, nas adjacências da porta do banheiro, e ficou imaginando todas as partes do corpo de Gabriela, as curvas e sinuosidades por onde a água, agora quente e relaxante, tocava.

    Depois do banho, quando se pôs fora da área do chuveiro para se vestir, Gabriela percebeu a situação e sentiu-se estúpida. O que fazer? Ela não poderia simplesmente vestir as suas roupas molhadas. Tomás, que ainda estava sentado no sofá em estado reflexivo, deu um salto quando viu Gabriela, trajando apenas uma toalha de banho, sair do banheiro e caminhar, sorrindo, ao seu encontro. "Você ficou louca?", disse ele. "O que, você queria que eu ficasse nua?", ela respondeu. "Tomás, seu tolinho, eu não tenho roupas secas aqui, portanto, ficarei vestida assim até que as minhas roupas molhadas sequem". Gabriela havia tomado uma resolução, mas o pobre Tomás, contudo, não imaginava a extensão das implicações dessa tal resolução.

    "Ainda está chovendo lá fora", disse ela, "até que minhas roupas sequem, ficarei assim, de toalha. Até lá, vamos fazer o que nos propusemos, ora", e sentou-se ao lado de Tomás. "Anda, onde está o computador? Você disse que me ajudaria com o conto". "Está bem", ele disse, enquanto se levantava para pegar o notebook que estava sobre o criado-mudo, no seu quarto. "Por onde vamos começar? Me fale sobre o que você ouviu na aula do professor Carlos". "Gabriela?", disse Tomás espantado, "o que há com você?". A garota o fitava num estado de semi euforia, no trânsito entre o sorriso, a risada e a gargalhada. Agora, quando se aproximava do limiar entre a risada e a gargalhada, Tomás se levantou: "Desculpe, Gabriela, mas você terá que ir embora agora". A moça parou, de súbito: "Mas por quê?" "Nós ainda nem sequer começamos a escrever o conto, Tomás, você disse que me ajudaria". "Eu não reconheço mais você", disse ele, perturbado.

    "Como assim?", ela disse. Tomás respondeu relatando uma longa história, a história de como eles se conheceram, ainda no último ano do ensino médio e de como a amizade entre os dois cresceu e tomou proporções maduras. Ela o ouviu dizer o quanto ele a admirava pela sua beleza, inteligência e, acima de tudo, pelo comportamento contido com que ela sempre se mostrou para com todos, em especial para com os garotos. Tomás não conseguia imaginar sua amiga, Gabriela, oferecendo-se, insinuando-se para ninguém, nem mesmo para ele. O rapaz a amava, a desejava e sofria por ela na exata medida em que a incompreendia: Gabriela era um mistério inabarcável para Tomás.

    "Gabriela, eu te amo!". Em resposta, a moça se levantou do sofá e, séria, retirou, bruscamente, a toalha de banho com que estava vestida, caminhou, decidida, até Tomás e o beijou longamente. Em seguida, nua, resplandecendo na sala do apartamento do rapaz como um farol a guiar os barcos na tempestade, caminhou até o banheiro onde vestiu as roupas ainda molhadas pela chuva. Gabriela apanhou sua bolsa e, encharcada como entrara saía agora, menos molhada, mas, mais misteriosa. "Não preciso mais da sua ajuda, Tomás, vou escrever o conto e enviá-lo ao professor eu mesma!". Girou a maçaneta da porta, atravessou o umbral e desapareceu na curva do corredor, deixando o pobre Tomás em um estado de dúvida que beirava o desespero.

    A chuva cessou, a noite ganhou densidade e atingiu seu apogeu até ser destronada pelo anúncio da alvorada. Quando finalmente amanheceu, Tomás não podia dizer que dormira, nem sequer que havia descansado, sentia-se mal. Preparou-se para a aula, mas, ao chegar ao campus, seus ânimos não eram melhores do que o de alguém que tivesse tropeçado numa rua qualquer e quebrado as duas pernas. Teria aula de gêneros literários naquela manhã, mas decidiu atrasar-se: ficou por um longo tempo sentado no mesmo banco da praça central do campus, na "Calçada Gozosa", na esperança de que aquela atmosfera de perfumes múltiplos o fizesse se sentir melhor. A verdade é que a tentativa funcionou, não se conhece a extensão dos mistérios da natureza, às vezes, tudo o que o sujeito precisa fazer é sentar-se embaixo de uma árvore e esperar. No caso de Tomás, sua espera durou até o chamado para a próxima aula.

    De volta à sala de aula, Tomás decidiu sentar-se no fundo, onde não estava habituado. Naquele dia, aconteceu uma coisa incomum: o professor anunciou a chegada de uma aluna nova. Lá no fundo da sala, onde jazia Tomás com a metade da esperança de que é necessário para se viver com algum contentamento, a boa nova chegou, não em forma de mensagem pregada, mas na própria encarnação do conteúdo desta. Na sua frente, havia uma mesa desocupada onde sentou-se a aluna nova. Tomás só pôde notar, surpreso, no curioso desenho da sua roupa, na camiseta que a garota vestia estava estampado um magnífico ovo Fabergé, com brilhantes nas cores azul, rosa e violeta. A garota olhou para trás e disse: "Olá, meu nome é Beatriz!". Ele endireitou-se na cadeira, a olhou fixamente nos olhos -- eram olhos azuis -- e disse, sorrindo: "Olá, Beatriz, eu sou o Tomás".

Conto: Angústia.




    A moça estava caminhando sozinha pela larga rua que margeava o parque, era Domingo e fazia cinco horas desde que a segunda Missa do dia na paróquia local terminara. O singular processo de digestão já tivera seu efeito, depois do farto almoço dominical. Pelo caminho até o parque, ela encontrou algumas pessoas, mas eram poucas, a garota não sabia descrever, mas tinha uma sensação ruim que não a deixava desde que saíra da igreja pela manhã e fora, pesarosa, almoçar com a família. Mantendo-se à direita na calçada, a jovem chegou à entrada do parque. Faltava pouco menos de duas horas para o poente, mas a brisa do crepúsculo se adiantara, a moça, que agora ocupava um banco à margem do grandioso lago do parque, começava a sentir frio. Mas a sensação que a perturbava era a angústia que sentia desde cedo, ainda na igreja. Era um tipo inominável de premonição que crescia em terror dentro de si na exata medida em que a garota, à beira do desespero, se esforçava para verbalizar para si mesmo o que ela estava sentindo.  


     Ela contemplava o lago e lágrimas escorriam pelo seu rosto. A jovem, então, começou a chorar copiosamente, como se da imensidão do lago emanasse uma atmosfera lúgubre que, com seu torpor, fizesse brotar dos seus olhos lágrimas abundantes. Depois do acesso de choro, a moça lentamente ergueu a cabeça, à sua direita um homem se aproximava, era um velho que usava boina e, debaixo de um de seus braços, carregava um volume semelhante a um livro. Mas, o que primeiro atraiu seus olhos nesse quadro estranho, fora o cão negro que o homem velho tinha consigo preso a uma coleira. O animal era de um aspecto terrível e, por um momento, a moça esqueceu-se de seus pesares para dirigir toda a sua atenção à passagem daquelas estranhas criaturas, que se aproximavam desde as árvores próximas ao cercado do parque.  


    Ao chegar a menos de três passos do banco onde a moça estava sentada, tão perto a ponto de notar o leve inchaço ao redor dos seus olhos, o homem parou, de súbito. Ambos se entreolharam e agora ela pôde notar sua expressão: os olhos do velho eram de uma negridão vazia que, com o lusco-fusco, ganhavam um aspecto ameaçador. A expressão da garota agora era de pura estranheza, de dúvida e de espanto. Contudo, antes que ela pudesse perguntar àquele espectro de homem qual era o seu desejo, seu cão que, até aquele momento estivera quieto ao seu lado, subitamente, como a apreensão que se segue depois de se ouvir um tiro, avançou, com extrema fúria, para cima dela. Sua primeira reação fora de surpresa, depois de incredulidade: ela não podia acreditar que havia um enorme e enfurecido cão com seus dentes afiados cravados em seu antebraço. Sua angústia que, há poucos minutos existira somente no seu espírito, agora perpassava por todo o seu corpo.  


    A moça, agora possessa por um crescente desespero, olhou para o homem velho de pé ao seu lado, na esperança intuitiva de que o sujeito puxasse a coleira do cachorro pondo fim ao seu sofrimento, porque os dentes do animal já haviam rompido o fino tecido que cobria o seu antebraço e, agora, uma pequena manifestação de sangue podia ser vista no local. Mas, estranhamente, o homem mantinha-se imóvel, mesmo quando ela, aos gritos, implorava por sua ajuda. A jovem sentiu ódio, um desejo pungente de matar o homem. Ela duvidou que ele fosse sádico, mas tinha certeza de que era irresponsável.  


    O homem velho a via contorcer-se e gritar em absoluta agonia ali, no banco do parque que havia se transformado numa verdadeira arena onde, num passado longínquo, homens enfrentavam a morte encarnada em feras selvagens. Seu cão mordia a jovem com cada vez mais ferocidade, a cada ataque, ele recuava e, à ameaça da jovem se levantar, a fera investia com novas e mais enérgicas mordidas. Toda a extensão do seu antebraço direito estava mutilada e o sangue escorria com uma abundância preocupante. O cachorro, que tinha todo o pelo de um negro reluzente ganhava, no focinho banhado em sangue, um aspecto demoníaco. A fera mordia e arranhava com fúria, rasgando as roupas da jovem; parte do que ela vestia para proteger seu busto, fora arrancado pelas investidas do animal. Um misto de vergonha, medo, ódio e confusão invadiu o seu espírito e a fez mergulhar, enquanto esperneava, gritava e se esforçava ao máximo para livrar-se dos dentes do animal, num estado de semiconsciência. E o homem velho continuava de pé, resoluto, decidido a não fazer nada para pôr fim ao sofrimento da garota estraçalhada pelo seu cão apoplético. A moça ficava cada vez mais confusa e desorientada, sua noção de tempo e de espaço parecia ter sido alterada. Antes de desmaiar, contudo, ela reuniu suas últimas forças para gritar, uma vez mais para o velho passivo ao seu lado, um derradeiro brado de lucidez: “Desgraçado!”.  


    Anoitecera. Quando despertou, ela descobriu que estava numa sala estranha, fracamente iluminada e que não parecia com nada que lhe fosse familiar. A imensidão do lago projetava-se na sua memória como uma vaga lembrança. Deitada numa cama estreita, sua cabeça girava entorpecida, mas a moça começou a recobrar a memória da véspera quando, para verificar o que fazia seu antebraço doer, descobriu curativos colocados cuidadosamente em ferimentos que cobriam dois terços do seu membro superior. Esses curativos eram as únicas coisas sobre seu corpo. Além da cama em que ficara deitada por tempo desconhecido, havia no recinto diversos quadros nas paredes, uma variedade incrivelmente vasta de pinturas em que eram representadas pessoas em estranhas posições: uma mulher loira e muito bonita estava completamente estendida numa cama feita de nuvens, absolutamente nua, sorrindo para o observador; outra, uma ruiva muito magra, podia ser vista sentada no que parecia ser um banco de piano, vestida apenas com a parte de baixo de um vestido verde muito escuro, estava na posição de amamentar, mas, ao invés de ter um bebê em seu colo, um corvo bicava um de seus seios de onde, para horror do observador, o sangue escorria até tingir de marrom o vestido verde. A moça imaginava que não deveria estar ali há mais de doze horas, desde que fora sequestrada no parque.  


    Como não havia nem sinal de onde suas roupas poderiam estar, sua única opção, se quisesse se ver livre desse estranho cativeiro, foi levantar-se e prosseguir assim mesmo como estava, nua. Enquanto caminhava através do recinto, entre a infinidade de quadros, a jovem percebeu um em especial, no qual um anjo era representado. Não parecia ser um anjo comum, visto que a figura celeste empunhava uma espada e, revestida com uma reluzente armadura tinha, sob seus pés, um dragão subjugado pela sua força. Era um arcanjo. Mas, o que diferenciava esse quadro dos demais na singular galeria, era a luz tosca que provinha da parte de trás da obra de arte, como se na moldura tivera sido instalado uma iluminação especial. Não era isso. A garota descobrira uma passagem secreta, pois o quadro que representava o arcanjo era, na verdade, uma porta.  


     A jovem teve receio de atravessá-lo, porque, pensou, alguém poderia vê-la despida. Mas, sem muito esforço, porque a situação exigia, ela recobrou a consciência de estar em um estado de risco, pois sabia que fora raptada no parque pelo homem misterioso de boina que trouxera consigo o cão que a atacou. A moça, então, abriu lentamente a porta e desapareceu atrás do algoz do dragão.  


     Não havia ninguém no novo recinto, mas, à semelhança do outro, este também estava atulhado de obras de arte nas paredes. A garota teve um tímido sobressalto ao perceber que esta sala possuía mobília e objetos que denunciavam certa normalidade, ainda que, para ela, tudo fosse sofisticado demais e nada familiar. A normalidade era desejável, em vista de toda a confusão que a atormentava, mas esse pequeno alívio durou pouco. Intuitivamente, a moça caminhou com alguma pressa até a janela mais próxima, mas, para isso, teve de atravessar um longo corredor formado pelos cruzamentos entre enormes estantes de madeira preenchidas com uma quantidade imensa de livros. Ela, evidentemente, estava numa biblioteca. Seu coração batia num compasso acelerado, fazendo-a arfar o tórax nu; seus olhos, esgazeados, corriam ligeiros por todos os cantos, denunciando uma estranha mistura de esperança e apreensão; suas narinas abriam e fechavam numa cadência que se comunicava com a ligeireza dos olhos; e seus lábios, roxos, ressecados e trêmulos, conferiam à garota um semblante de puro terror.  


     Poucos segundos separaram a jovem da porta escondida na moldura da pintura do arcanjo até a janela do novo recinto onde, às pressas, arrancou, com certo cuidado, a cortina cor de escarlate para, finalmente, cobrir a sua nudez. Apesar de ter passado várias horas sobre a cama daquele estranho quarto nas adjacências secretas da biblioteca, ela estava exausta, faminta, sedenta e, principalmente, confusa sobre tudo. Contudo, ainda assim teve que experimentar mais esse dissabor: haviam grades nas janelas, não só nesta, mas em todas do lugar. Seu antebraço direito, que fora mutilado pelo cachorro, doía de modo intermitente, o que fazia a jovem morder a mandíbula e franzir a testa de quando em quando, a cada manifestação de dor. Ademais, àquela altura de um transcurso de tempo incerto, seu estômago também começou a se anunciar, isso a fez lembrar do farto almoço em família que tivera na véspera, antes de sair para caminhar no parque. De todas as pequenas memórias e dores miúdas que sentia numa crescente que começava a provocar na sua consciência uma desordem desesperadora, nada a perturbava mais do que a angústia que a fizera sair para caminhar sob o pôr do sol do dia anterior. A vista da janela não foi animadora: antes de tudo, no primeiro plano, haviam as grades que, como se a esperança da jovem fosse tão densa quanto o seu corpo, bloqueavam sua passagem, extinguindo por completo a promessa de uma fuga. De mais a mais, nenhum sinal de ajuda fora avistado, ninguém, nenhum transeunte para quem a moça pudesse pedir ajuda.  


     Envolta na cortina escarlate, tudo o que ela podia ver através das grossas grades da janela era um imenso e magnífico jardim, ornamentado com toda sorte de canteiros floridos dispostos de mil formas diferentes por toda a extensão do horto. Ela não pôde entrever o horizonte, porque o desmedido jardim terminava, abrupto, num extenso muro coberto por Lágrimas-de-Christo mal cuidadas, que contrastavam com o esmero com que o jardim era mantido. Seus olhos não podiam vislumbrar o que estava para além daquele ponto. A bela jovem sentiu um aperto na garganta que se traduzia em uma vontade irresistível de chorar. Então, aproximando o rosto das grades da janela, ela cedeu, chorou muito, tremendo e soluçando. A garota permitiu que mais um pouco das suas forças fosse levadas pela torrente das lágrimas.  


     Nesse estado permaneceu por alguns minutos, ali, envolta na cortina rubra, chorando enquanto contemplava a imensidão do jardim através das grades da janela. O medo dificultava o seu raciocínio, ela não tinha grandes ideias, aliás, nem mesmo demonstrava iniciativa para tomar pequenas decisões, como, por exemplo, procurar um telefone ou simplesmente sair correndo gritando, pedindo por ajuda. Tinha raiva de si, porque, quando tomou a resolução de caminhar até o parque, deixara o celular em casa, pois não queria que a incomodassem, não queria, sequer, que falassem com ela. Mesmo tendo pensamentos vagos e inúteis, a garota se viu ocupada com uma reflexão que não a ajudou, absolutamente, a encontrar luz na escuridão, antes, lhe aumentou a desordem interior, enfraquecendo sua consciência: seu algoz não dissera nada enquanto a via sucumbir pelo cão feroz, nenhuma palavra, nenhum insulto, nenhuma pista verbal que a ajudasse a entender a situação. Nada. E agora ela estava ali, naquela suntuosa biblioteca de uma mansão completamente desconhecida, temendo pela sua vida, com sede e fome; cobrindo o corpo unicamente com o tecido empoeirado de uma cortina e sentindo o latejar intermitente do braço ferido.  


    Subitamente, a jovem ouviu latidos que provinham lá de baixo, do jardim. Era o cão negro que a mordera no antebraço. Um terror arrepiante percorreu todo o seu corpo, fazendo a ferida no membro superior latejar com uma intensidade atroz, de modo que ela experimentou novamente o frescor das mordidas do animal. Não pôde se conter: afastando-se de um salto da janela, a moça pisou na barra da cortina que, aliás, era imensa a ponto de se arrastar, como um véu carmesim atrás dela, quando caminhava. Tropeçou e a queda fora inevitável. Revivendo uma somatória de todas as agonias da véspera, a garota se pôs a correr, atravessou o salão da enorme biblioteca esbarrando nos pequenos móveis pelo caminho e, com a extensão da cortina que chegava a cinco passos atrás de si, levava consigo, arrastados, pequenos objetos e outras miudezas que, na mais completa afobação, ia derrubando na fuga. Poucos segundos a separaram de ouvir os latidos da fera até a imensa porta da biblioteca.  


      Apesar de ter dimensões colossais, a porta era leve. Nela estavam esculpidos floreios de ramos de carvalho sobre os quais, em quantidade abundante, havia corujas. Certamente, a jovem desesperada não percebeu os ornamentos quando, veloz, atravessou o umbral. Do lado de fora, ela se viu num amplo corredor iluminado pela luz natural que entrava através de grandiosas janelas. Esse corredor dava acesso à escadaria da mansão pela qual descia-se da biblioteca para as outras dependências do local. A moça também não notou as pinturas expostas na parede adjacente à escadaria, nem sequer o cupido esculpido em madeira na base do corrimão, ao fim desta. Desceu, majestosa, como uma ninfa da floresta perseguida por um observador fascinado pela sua beleza e mistério. O vento que entrava através das enormes janelas fazia flutuar o véu escarlate.  


     Quando se viu no primeiro piso da casa, os latidos do cão não mais eram ouvidos. Mas, ela estava decidida a escapar desse cativeiro. Correu à procura de uma saída qualquer, uma porta destrancada ou uma janela sem grades, uma via qualquer de acesso ao jardim onde, mesmo com a certeza da presença do cão lá fora e de seus iminentes ataques, a jovem arriscaria uma fuga. Correu aflita até a porta mais próxima, mas só chegou até lá depois de derrubar um magnífico relógio de carrilhão que permanecera, por uma quantidade de tempo desconhecida, junto à parede, ao pé da grande escadaria. Era um modelo antiquíssimo, de pedestal que, a julgar pelos detalhes esculpidos na madeira e os trabalhos em bronze no mostrador, devia ser um relógio de pêndulo holandês Huygens do século XVII. A angústia da moça levou ao chão, com um potente estrondo, aquela maravilha que fora, por centenas de anos, uma síntese deífica de arte e mecânica. Como um peixe que ignora a natureza do meio em que nada durante toda a vida, a moça contornou os destroços do relógio sem atinar para o que fizera.  


    Esta porta estava trancada, mas, estranhamente, como a força de um contraponto, havia uma janela desguarnecida de grades no opulento hall da mansão. A jovem, sem se atentar para os prováveis perigos que a esperavam lá fora, abriu bruscamente a janela. Nenhum sinal visível do perigo. Fez passar primeiro sua perna esquerda, mas, como a janela não era ampla o bastante, não conseguiu encolher os ombros o suficiente para que o tronco do seu corpo passasse em seguida. Adotou outra estratégia: sairia através da janela passando, primeiro, as duas pernas, de uma só vez, como se entrasse num tobogã. Apoiou ambas as mãos na ombreira da pequena abertura e, aplicando força suficiente para se erguer, dobrou os joelhos simultaneamente e inseriu, ao mesmo tempo e de uma só vez, ambas as pernas pela abertura da janela. Conseguiu avançar até a cintura, quando notou um detalhe importante que a deixou, literalmente, numa posição desconfortável. A grossa cortina vermelha que a cobria prendera-se nos adereços de metal que formavam, como praticamente tudo na casa, os ornamentos floreados da estrutura. O enrosco foi definitivo. A garota não conseguia desvencilhar-se dele sem, para isso, retornar com metade do corpo para dentro da mansão. Ela não gastou três segundos no julgamento da situação: sairia assim mesmo, abandonando o véu carmesim. 


       Uma grande porção da cortina escarlate já saíra pela janela, de modo que a moça ganhou um tipo de proteção, como um acolchoado que a impedia de ter contato direto com a aspereza da madeira que revestia o batente da janela ou com os adornos trabalhados em metal. Lentamente e com alguma dificuldade, a garota foi, pouco a pouco, volteando o seu corpo por sobre o tecido vermelho de maneira que agora fora possível avançar para além da cintura. Nesse estágio e em função da dinâmica da rotação, ela ficou apoiada sobre seu ventre no batente da janela e pôde, finalmente, tocar com os pés no chão do lado de fora da mansão. A cortina estava por debaixo do seu corpo, assim, desde os pés até o pescoço que agora ganhava passagem através da abertura, ela estava completamente nua.   


     O quadro era fantástico: o corpo nu emergia através da pequena janela em movimentos circulares, tendo debaixo de si uma grande porção do tecido rubro da cortina que se estendia desde o emaranhado preso aos adereços metálicos, no interior, até o chão, do lado de fora, que se preparava para receber o corpo branco de quem vinha. O quadro ganhava a expressividade mágica que entorpece os sentidos do observador fascinado ao mesmo tempo em que o seduz. A jovem saía de lá, daquela imensidão vermelha como uma ninfa que nasce, delicada, porém poderosa, semelhante à lua; ela provinha do mundo onírico, tão confusa e estranha quanto o quadro fantástico que protagonizava. Quem quer que tenha sido testemunha ocular desse ato de desespero que, pela forma, ganhara contornos deslumbrantes, recebera uma dádiva, um presente imerecido. Ao endireitar-se de pé, depois de sair finalmente da mansão, a moça teve uma vaga consciência do talho regular de uma barra de ferro em sua nuca. Não sentiu dor, nem medo. Desmaiara.  


    -- Qual é o seu nome?  

   -- Vamos, responda! 

   -- Está com fome? 

   -- Veja, eu trouxe comida para você.  

   -- Acorde, menina! 


     O homem velho era paciente. Seus modos deixavam transparecer um cuidado incomum, um misto de preocupação e afeto.  


      -- Estou com fome. Disse a garota, acordando.  

   -- Coma, então, foi eu que preparei.  


    Havia pão fresco com manteiga passado na chapa, alguns fartos pedaços de queijo e suco de laranja. Ele trouxera o café numa grande caneca de vidro transparente em outra bandeja. A garota despertou com uma fome renovada, por isso, de início, não perguntou sobre coisa alguma. Comeu fartamente e, enquanto se alimentava, começou a reparar no ambiente. O velho deixou a comida e saiu. Ela estava numa cama, mas, diferentemente da última em que repousou, esta era maior, mais confortável. A cortina escarlate desaparecera. A moça ainda não estava vestida decentemente, mas as roupas de cama a cobriam. Seu antebraço envolto nos curativos não doía mais, nem sua cabeça que levara o golpe que a pôs para dormir na véspera, mas ela estava muito fraca.  


     O quarto, que era uma suíte, como a jovem descobriria pouco depois, seria simples e dentro dos limites da imaginação da garota, se não fosse por um detalhe: os quadros nas paredes. Eram cerca de meia-dúzia deles. Novamente, mulheres eram representadas em pinturas estranhas. Ao mesmo tempo em que se alimentava, ela observava os quadros percebendo o quanto eram belos e misteriosos. Na base da moldura do primeiro quadro que viu, ela leu um nome que, certamente, pensou, seria o nome do artista que o pintara: Luís Ricardo Falero. Na pintura, ele retratou uma bela ninfa. Inserida num espaço etéreo, a ninfa, que tinha uma expressão de encantamento, elevava a mão direita aos céus num esforço para tocar a lua. A nudez do seu corpo que preenchia toda a porção central da tela evocava, na mente da garota que o observava, uma sensação de mistério e maravilhamento. De todos os quadros expostos nas paredes do quarto, este fora o primeiro que ela viu, porque estava próximo de sua cama, na parede à sua frente, de modo que, enquanto tomava o seu café da manhã, a jovem não tinha outra preocupação senão desvendar a mensagem oculta por trás daquelas silhuetas femininas.  


    Depois de comer, a moça teve impulsos de se levantar. Não pôde de imediato, porque sentiu sua cabeça girar. Sentou-se na cama e assim permaneceu por alguns minutos, pensando se teria de vagar pela mansão vestindo tudo, exceto suas próprias roupas e, principalmente, se conseguiria se libertar de tudo isso. Uma nova pintura, contudo, atraiu sua atenção. Na outra extremidade do quarto, próximo à porta e ao lado de um relógio de pêndulo fixado na parede, havia um quadro fantástico que fez a garota levantar-se da cama e, protegendo sua nudez com o cobertor, caminhar até lá, para observar os detalhes da obra. Uma plêiade de mulheres nuas cavalgava vassouras e bodes em uma viagem através de regiões etéreas sob o luar irradiado através de fendas nas nuvens negras da noite, eram muito bonitas em sua maioria. Um exército de morcegos e outras criaturas sombrias que voavam entre o cortejo das mulheres parecia se esforçar para bloquear a luz da lua que, através das nuvens, no canto superior esquerdo do quadro, lançava sobre as viajantes do além uma projeção de mistério. Abaixo de uma criatura semelhante a um réptil, no canto inferior direito, o nome de Falero estava lá. Era a primeira vez que a moça vira a obra.  


   O restante dos quadros era do mesmo gênero deste. Ninfas da floresta, fadas e bruxas, belíssimas em sua maioria, conferiam ao cômodo uma atmosfera de encantamento irresistível. A moça estava sentada numa cadeira que, com uma pequena mesa de madeira, formava um conjunto aconchegante e algo sofisticado que a jovem, confusa acerca de tudo, parecia gostar cada vez mais. Subitamente, enquanto ela mantinha os olhos fixos no quadro do Sabbath, a porta do quarto se abriu: 


     -- Vista isso. 

    -- Hey, espere! Não! Por favor, espere! 

    -- São suas roupas, menina, vista. 

    -- Espere! Não me deixe aqui, seu cretino!  

    Depois de atirar as roupas da garota para dentro do quarto, o velho saiu e trancou a porta antes que ela pudesse alcançá-lo. A moça, depois de comer, parecia ter chegado a uma importante resolução sobre seu estado. Estava decidida a lutar por sua vida. Assim, depois de vestir finalmente as próprias roupas, ela sondou minuciosamente o quarto, na esperança de encontrar qualquer coisa que a servisse em seus intentos.  


     -- Eu vou matar você, seu maldito!  


    Depois de se alimentar, como se ganhasse forças para prosseguir viva, toda a sua compleição desenvolveu um aspecto de ódio. Ela gritava, esbravejava insultos e, enquanto caminhava destilando ódio pelo quarto, ia, sem nenhum critério, destruindo tudo o que suas mãos pudessem tocar. Tudo. Os quadros que, há alguns instantes, prendiam sua atenção promovendo, através da beleza, alguma ordem interior, agora eram deixados em mil pedaços pelo chão; a cama, cuidadosamente preparada, que a acolhera durante a noite era como que um símbolo do sadismo do velho; os pequenos móveis típicos do ambiente íntimo eram movidos do lugar com brutalidade. Seus cabelos estavam revoltos, seu rosto perdera todo resquício da harmonia jovial. Ela estava suja. Suas narinas abriam e fechavam numa cadência violenta e todo o seu semblante era como um reflexo da sua mixórdia interior. Ela gritava, chorando, culpada por ter perdido o recato do ambiente familiar em que fora criada:  


    -- Desgraçado! 


    Depois de muito gritar e deixar aquela alcova completamente destruída, a moça sentou-se na beira da cama e, comprimindo ambas as mãos contra a boca, chorou aos prantos. Não sabia o porquê, mas se sentia arrependida e culpada. Assim permaneceu até ouvir a maçaneta da porta girar. Ela fizera muito barulho durante o acesso de raiva, tanto que atraiu a atenção do velho. Não havia muito sobre o que pensar, ela tinha que agir rápido. Então, com muita agilidade e cuidado, rapidamente a jovem pegou um generoso pedaço de vidro de um dos objetos estilhaçados no chão e, envolvendo-o num pequeno pedaço que, de um só golpe, cortara do cobertor, o manteve firme na mão direita e se posicionou ao lado da porta. A espera foi curta. A porta se abriu e o velho foi ao chão, de um só golpe no rosto. O sangue era abundante. O corte prometeu deixar, para sempre, uma monstruosa cicatriz.  


     -- Eu vou te matar, seu maldito! Isso é por ter colocado suas mãos imundas em mim! 


    O velho nada dizia, nem sequer rumorejos ou interjeições de dor saiam de sua boca. Mas ele era forte e, depois de alguns segundos recebendo os golpes improvisados, amadores e descontrolados da garota, como se se recuperasse do golpe inicial, começou a revidar. Com uma de suas mãos segurando firmemente o pulso que sustentava a mão armada da jovem e com a outra cravada nos cabelos dela, na porção posterior da sua cabeça, o velho a dominou. Com um esforço enérgico e bem calculado, ele conseguiu se posicionar por cima da garota enfurecida.  


    -- Me solte, seu filho duma puta! 

    -- Eu vou denunciá-lo à polícia!  

     -- Socorro! 

     -- Não! 

     -- Ai! Pare, por favor, está doendo! 

     -- Você está me machucando! 

    -- Ai! 


     -- Largue esse vidro, menina, agora!  

  -- Largue ou eu arranco os seus cabelos! 

  -- Largue! 


    Mesmo mergulhada num pandemônio inimaginável de dor e terror, ela conseguia perceber melhor a voz do velho agora, como se sua concentração fosse direcionada a isso inconscientemente. A voz dele era grave e de uma densidade encorpada que a moça não percebera antes, quando ainda estava na cama, recebendo dessas mesmas mãos que agora a dominavam, o seu café da manhã. Enfim, deixou o vidro envolto no pedaço do tecido do cobertor cair, lentamente, da sua mão direita. Sentiu a intensidade da pressão em seu coro cabeludo diminuir, assim como a dor. Algumas lágrimas começavam a escorrer lateralmente do seu rosto. O velho que a encarava com o rosto ensanguentado subitamente levantou-se e, recolhendo com rapidez o pedaço de vidro, se afastou.   


    -- Quem é você e por que está fazendo isso comigo? 

  -- Eu estava observando você no parque, menina.  

  -- O quê? Por quê? 

  -- Fui incumbido, é minha missão.  

  -- Você é louco! Que lugar é esse? 

  -- Não se preocupe, menina, você não vai sair daqui.  

  -- O quê? Onde eu estou? 

  -- Num lugar seguro.  

  -- Seu velho desgraçado, você não tem o direito de me manter aqui, em cativeiro. Você é um criminoso! Um covarde!  


    O velho, depois de ouvir estas últimas palavras da jovem, afastou-se rapidamente e, levando consigo o pedaço de vidro que a garota usara para feri-lo no rosto, ia passar pela porta quando, de um salto, a garota levantou-se e o deteve. 


    -- Você não vai me impedir, não dessa vez! 


     Outros murros, socos e pontapés foram desferidos por ambos os gladiadores que agora, com renovado esforço, se enfrentavam ali, no limiar da porta do quarto onde a garota passara a noite desde que recebera, na véspera, o golpe na cabeça que a fizera desmaiar. Agora, contudo, ela estava realmente decidida a escapar, a fugir desse lugar no qual tudo o que podia ver, tocar ou sentir por qualquer dos sentidos, era confuso, caótico e perigoso. O velho lutava com um vigor incomum e intimidador, por duas vezes quase a dominou pelos cabelos novamente. E, com o pedaço de vidro que levava, tentou, sem sucesso, cortar-lhe o rosto também. A moça, por sua vez, movida pela intuição ou pelo mais expressivo desespero, acertou, finalmente, um pontapé eficaz entre as pernas do homem que, subjugado pela dor, capitulou, prostrado, no chão. A garota, depois de perceber que vencera o combate, passou pelo seu oponente derrotado com rapidez e, novamente, se viu correndo pela mansão. Agora, porém, estava mais confiante.  


    O quarto onde permanecera por uma noite ficava no fim de um longo corredor através do qual a moça vitoriosa passou, correndo, mas menos tensa do que antes. Não prestou atenção nos vasos com motivos gregos que, postos em fileiras nos dois lados do corredor, perfaziam um caminho triunfal através do qual a jovem atravessava, como uma guerreira amazona, advinda de um combate. O caminho reto era quebrado por uma bifurcação através da qual os olhos do velho combalido, perdidos na extensão do rosto ensanguentado, viram a garota desaparecer.  


    O velho permaneceu deitado no chão por muito tempo, porque sentia as dores resultantes do golpe certeiro que a moça desferira entre as suas pernas e, além disso, sentia também o ardor do corte profundo em seu rosto que, agora, depois que os ânimos do combate esfriaram, progredira para uma dor aguda que reverberava desde o rosto até a cabeça. Ele fora seriamente ferido. A ferida não parava de sangrar e a inevitável fraqueza tomou conta do seu corpo, extinguindo por completo suas forças. A artéria facial transversa, uma das várias bifurcações da artéria carótida externa, fora atingida. Quando o velho expirou, a moça estava longe, ela não pôde testemunhar a completa aniquilação do seu algoz. Corria, finalmente, pela imensidão do jardim enquanto deixava à mostra um misterioso sorriso que parecia ser o reflexo da sua desconfiança em se saber assassina.  


    Antes de alcançar o muro tomado pelas Lágrimas-de-Christo, a garota ouviu latidos. Voltou os olhos para uma região adjacente à cobertura da garagem da enorme casa, lá estava o cão negro, acorrentado, latindo com furor, como se sentisse o espírito do amo esvair-se do corpo naquele momento. Parou, olhou para o seu braço ainda envolto nos curativos, quis matá-lo. Realmente o faria se tivesse às mãos algum instrumento para tal. Mas, desistiu do intento. Os passos apressados deram lugar a uma caminhada serena, ela não pensava mais no velho e, agora, tinha certeza de que o cão nada faria contra ela. E, no transcurso do tempo em que ali esteve, não notou a presença de mais ninguém, nenhum jardineiro, cozinheira ou empregado que tivesse como ofício servir ao velho e a seu cão. Sentiu os múltiplos perfumes dos canteiros de flores, contemplou as árvores frutíferas e floridas, imaginando, intrigada, como uma criatura tão desprezível poderia viver em lugar tão belo.  


    Quando conseguiu pular o muro, descobriu que não estava muito distante do parque, porque a mansão onde permanecera cativa ficava no fim de uma rua obscura, sem saída, travessa da avenida que margeava a imensa área arborizada onde fora atacada pelo cão. Depois de dar poucos passos para longe do muro da mansão, a moça conseguiu divisar o lago do parque e, observando com mais atenção enquanto caminhava, identificou o banco, arena do seu duelo contra a fera. A jovem teve ímpeto de ir até lá, chegou a enviesar os seus passos na direção do local, quando, de súbito, ouviu uma voz familiar chamando pelo seu nome: 


    -- Beatriz! Beatriz! -- dizia a voz, -- Acorde, minha filha! -- era o seu pai. 


      Fora um sonho. Agora, Beatriz tinha que se levantar e ir para a faculdade, era segunda-feira e nesse dia a moça teria prova. Não foi. 


  Alice se despede    Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seu...