quinta-feira, 25 de junho de 2020

Menton*, por Marques Rebelo.




     -- E como estamos quase na fronteira, diga-me, amigo, o que pensa da França?

     -- Penso que tem os melhores perfumes do mundo, mas não gosto de perfume engarrafado. Penso que a sua cozinha é requintada e ilimitada, mas eu prefiro comidas simples, como ovo estalado. Penso que guarda o segrego dos vinhos fabulosos, mas o que eu aprecio mesmo é água. Água somente. Penso que tem costureiros famosos, mas não sou otário. Penso que é ótimo o seu teatro, mas prefiro o inglês. Penso que são lindas e picantes as canções bulevardianas, mas não há nada no mundo igual ao jazz! Penso que sua vida mundana é um paraíso de elegância, mas meus hábitos são menos "fesandês". Penso que sua vida espiritual é intensíssima, mas me acomodo melhor com o asseio corporal. Penso que tem mulheres lindíssimas, mas eis um assunto sobre o qual não admito nenhuma preferência de origem. Penso que seu passado guerreiro é uma apoteose, mas eu sou inimigo dos canhões. Penso que Renard é minha bússola, mas que novos ventos perturbam a minha rota. Penso muita coisa, enfim, mas são segredos que irão comigo para o túmulo.


    * Menton é uma localidade francesa situada quase na fronteira italiana, a meio caminho da cidade italiana de Ventimiglia e o principado do Mônaco. A crônica acima integra um conjunto de outras crônicas publicadas por Marques Rebelo no jornal vespertino "Última Hora", do Rio de Janeiro, entre 1951/52 e que aqui foram reunidas em livro pela José Olympio Editora sob o título de "Correio Europeu", 2º edição, Rio de Janeiro, 2014 e constituem um conjunto de impressões de viagens que o autor fez à Europa do pós-guerra. 
    

terça-feira, 23 de junho de 2020

Jacó e Raquel -- soneto 29 -- de Luís de Camões


Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se não a tivera merecida;

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora,
Para tão longo amor, tão curta a vida.


domingo, 21 de junho de 2020

Brinquedo Chinês

    

    Uma das lembranças mais marcantes da minha juventude foi quando ganhei de presente um telescópio do meu pai. Eu devia ter treze ou quatorze anos. E lá estava eu, embasbacado com a possibilidade quase onírica de ver as coisas tão distantes bem próximas do meu nariz. As belas silhuetas das vizinhas mundanas que habitavam o meu bairro de subúrbio, a famosa cratera Copérnico da lua, alguns planetas e as estrelas, meus interesses, nessa respectiva ordem. Depois, quando, deliberadamente, tomei posse de um pequeno manual de astronomia da biblioteca da escola, passei a me interessar também por toda sorte de objetos curiosos do céu noturno, diurno e o escambau. O entusiasmo era tamanho que no dia em que ganhei o objeto, nem sequer esperei o cair da noite para ver a lua. Antes do pôr do sol, lá estava eu: A postos. Mas, para desfazer o meu coração de mancebo impaciente, estávamos em dias nublados, chuvosos e nada convidativos para observações astronômicas. Me lembro que, entre impropérios e murmurações, cheguei até mesmo a amaldiçoar... as nuvens. Tamanha era a impaciência para ver se tudo aquilo que eu lera sobre Galileu era mesmo verdade; seus relatos das observações realizadas ao longo de sucessivas noites no longínquo ano de 1610 me fascinaram. 

    Numa noite, porém, uma coisa fantástica aconteceu. Guardarei comigo para sempre a memória desta noite. Porque eu não me continha de entusiasmo, meus pais permitiram que eu dormisse várias noites seguidas na casa dos meus avós, onde havia uma sacada formidável para observar o céu noturno e -- nem tudo são pétalas escarlates nessa rosa, há espinhos também -- para os espaços diurnos que revelavam uma extensão desmedida do nosso bairro de subúrbio, um lugar, para os mais sensíveis, fraco de feição. Dormir na casa dos meus avós era um evento mágico que somente acontecia em dias especiais da semana, para mim, sexta-feira. Mas, não era sexta-feira. E lá estava eu, aparvalhado. Já era chegada a madrugada e meus avós, inquietos com a minha insistência em permanecer no sereno da sacada, insistiam para que eu fosse para a cama. Resisti. Eu não sabia manejar com perícia aquela parafernália chinesa. O instrumento, claro, não era dos mais potentes, não era sequer profissional, mas, para a mente de uma criança, as exigências técnicas são de outra ordem. Nesses instrumentos ópticos, existem pequenos mecanismos instalados nos dois lados de um pequeno tubo, como cabeças de parafusos, através dos quais, pelo movimento de rosquear, o sujeito aproxima e afasta a imagem. É a tal da focalização que eu, nas noites do primeiro uso do equipamento, ainda não dominava. 

    Por isso, na tentativa de fazer com que as imagens capturadas ficassem nítidas, eu retirava a lente ocular e, com as próprias mãos, tentava focalizar a imagem projetada na lente objetiva do telescópio. É claro que funcionava, eu até dei pulos no ar quando consegui ler o letreiro de um supermercado que ficava muito distante de nossa casa e do qual só podíamos, a olho nu, distinguir as cores do prédio. Essa foi a primeira vez que experimentei o êxtase proporcionado por aquela maravilha óptica. Mas, os píncaros da experiência só seriam atingidos no alto da madrugada. E eis que, no sereno da imensa sacada da casa dos meus avós, algo mágico aconteceu: eu vi as crateras da lua! Uma torrente de emoções jorrou através daquele corpo franzino de menino. Não pude acreditar. Gritei, quis chorar. Chamei a minha mãe, a minha vó, os meus primos, quis acordar a todos. Só o meu avô veio, trajando seu samba canção, cambaleando de sono, mas com os olhos esbugalhados. Viu o que eu vi, mas, contrariando o meu bom senso de criança, me obrigou a guardar aquele troço e ir dormir. Custei a pegar no sono.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Regresso à Fé -- 2017 --


*

      Mencionarei aqui pessoas específicas de meios específicos, o meu propósito foi o de contextualizar e sintetizar os elementos atuantes no processo de minha conversão. Meu nome é Vitor Marcolin, tenho 23 anos e sou um ex-Calvinista. Compartilho, com alegria, esse pequeno relato de minha conversão à Fé Católica, na esperança de poder ajudar a outros que, assim como eu, buscam por orientação, ou, pelo menos, por uma pista de como proceder em face da dúvida e dos temores que uma possível "crisis" (do grego, mudança) possa despertar em suas consciências. Aqui está, na verdade, o relato de meu regresso, pois recebi o Sacramento do Batismo quando criança.  


    Nasci numa família católica conversa ao protestantismo. Minha família seguia os preceitos da Igreja sem fervor ou devoção. Como não poderia deixar de ser, por falta de maturidade e juízo, os acompanhei, claro, porque não tinha escolha. Cresci num típico lar protestante, para ser preciso, numa confusa dissidência protestante. Logo que me vi na posse de algum juízo, um pouco mais amadurecido, guiado por algum senso de realidade e profundamente incomodado com as incoerências do meio protestante, decidi buscar por algo de valor que eu não tinha: humildade. 


     Na medida de minha maturação e progresso nos estudos que decidi empreender por conta própria, comecei a desenvolver uma percepção real de minha própria conduta enquanto cristão e deste fato que é o Cristianismo. Essa percepção me indicou que, enquanto membro de uma dissidência protestante, cercado por inúmeras contradições, eu estava muito distante da realidade. Minha família, embora, evidentemente, não aprovasse que eu, em função dos estudos, começasse, pouco a pouco, a me afastar de nossa comunidade, não me proibiu de continuar em minha busca.  


    A comunidade onde eu estava era permeada por rupturas, hiatos, divergências, confusões, divisões, orgulho e, porque eu buscava por um senso de ordem, essa situação se tornou absolutamente insuportável. Depois de algum tempo, consegui dar nome à minha busca: O tal senso de ordem, na verdade, era simplesmente uma busca pela conexão com a realidade histórica do cristianismo, no sentido de que deveria existir uma igreja que, durante todo o transcurso do tempo desde o anúncio das Boas-Novas do Evangelho, fosse a expressão mesma deste Evangelho cristalizado na realidade, como uma instituição. Não sei se me faço entender, mas depois de um tempo, descobri que a comunidade onde eu estava, de modo algum poderia ser essa igreja, exatamente pela ausência do senso histórico e por outros motivos mais que demonstrarei mais adiante. Foi então que voltei minha atenção à Igreja e nela encontrei tudo o que estava procurando. De início, percebi o senso de continuidade nela, da segurança em saber que houve e há uma legítima e eficiente manutenção da mensagem das Boas-Novas do Evangelho por dois milênios. Eu já era um católico, só que ainda não sabia. 


    Eu sabia que o Cristianismo não era, claro, um mero conjunto de prescrições morais com o único propósito de censurar o mínimo deslize de comportamento. No entanto, percebi que, entre as pessoas da minha comunidade com quem eu frequentemente conversava a respeito, a ideia, a imagem da Igreja Católica era, justamente, aquela da instituição cruel que, em nome de Deus, cerceava as consciências através de uma verdadeira perseguição psicológica e, claro, não só psicológica, mas também que lançava à fogueira as multidões de hereges.   


    Estudando, descobri o trabalho do professor Olavo de Carvalho. Talvez eu não tenha ainda maturidade para expressar minha gratidão em conhecer seus esforços. Afirmo que foi através de seus livros, aulas, explanações e indicações que fui despertado para o regresso à Fé Católica. Primeiro, por um sentido filosófico, concreto, de significação real, de valor de civilização. A Igreja Católica é o fundamento do nosso mundo Ocidental, de nossa sociedade, de nossa civilização. Ela é a guardiã de todos esses princípios e valores que possibilitam nossa existência na sociedade enquanto criaturas carentes de redenção. Segundo, pelo transcendente. Em uma das indicações do professor Olavo, fui apresentado a Santo Tomás de Aquino.  


    Quando afirmo ainda não poder expressar minha gratidão ao professor Olavo é exatamente por isso. Ler Santo Tomás é como conhecer um mundo novo e perene: Fica-se extasiado com a sua lucidez. É claro que ainda não concluí meus estudos sobre o Doutor Angélico, estou longe disto. Mas, pelo que descobri até o presente momento, não há sequer penumbra de semelhança com ele no meio protestante. Nem poderia haver. O maravilhamento de minha conversão pode ser ilustrado pelo maravilhamento de um rapaz que passou a vida inteira nadando no pequeno lago de um sítio no interior e, de viagem ao litoral, descobre finalmente o mar.   


     Quando conheci o trabalho do professor Olavo, conheci também uma multidão de outros pensadores que, certamente, levarei muito tempo para estudá-los. Através da internet, conheci a atuação do Padre Paulo Ricardo e comecei a estudar a história da Igreja. É impressionante o quanto a narrativa protestante é falsificada. Na verdade, empregar o termo "narrativa" para o discurso de formação do meio protestante é incorreto, porque não existe uma narrativa unificada, o que há são narrativas diversas, diferentes, divergentes e, frequentemente, conflituosas entre si. O indivíduo da denominação X tem esta interpretação das Sagradas Escrituras e o sujeito da denominação Y tem, por seu turno, aquela outra. O conflito acontece porque as interpretações da mesma realidade são divergentes, mas não é uma divergência construtiva, no sentido de que tal aspecto da realidade não capturado por esta denominação pôde sê-lo por outra, de maneira que, ao cabo da somatória, o resultado seja uma visão completa da realidade. Não. O que existe é um estado de conflito permanente que leva o crente a duas saídas: Primeiro, ele admite que sua interpretação é, de fato, a única aceitável ou, o que é mais comum e eu experimentei isso na minha comunidade, o sujeito cai na falácia do relativismo e passa a dizer que, no fim, o modo como as pessoas interpretam as Sagradas Escrituras não é tão importante assim. A partir desse ponto, continuar como protestante tornou-se insustentável. Tive um desejo ardente de conhecer uma comunidade católica. 


     Comparar a barafunda do falatório protestante com o magistério da Igreja Católica é como comparar as paredes desprovidas de reboco dos casebres de vila nhocuné com a suntuosidade dos arcos bem acabados das catedrais góticas. Li o relato de conversão do Fábio Salgado de Carvalho, um ex-Batista também converso à Fé Católica. Ele me inspirou. Com competência, dedicação e compromisso com a verdade, o Fábio está compilando relatos de protestantes convertidos ao Catolicismo. Ainda não encontrei alguém mais competente do que ele no cuidado com que se empenha para compilar e divulgar uma preciosa bibliografia de testemunhos, de relatos de conversões e contundentes explanações do pensamento de homens eruditos que muito têm a dizer sobre a Tradição Católica e a narrativa protestante. É certo que farei bom uso desse valioso material. 


     No dia 31 de maio de 2017, fui à estreia do filme do Josias Teófilo sobre o professor Olavo, O Jardim das Aflições. Foi nessa ocasião que ouvi o anúncio do início do III Ciclo de Palestras Santa Generosa, organizadas pelo professor Rodrigo Gurgel. O ciclo iniciou-se no dia seguinte, 1º de junho. Finalmente pude conhecer uma comunidade católica. Das doze palestras do ciclo, a que mais me surpreendeu foi a do dia 29 de junho: Mariologia, a urgência da mensagem de Fátima para o mundo, ministrada pelo Mateus de Castro – conhecido como “O Papista”. A partir desta noite, fui despertado para uma nova realidade, passei a perceber que havia uma conexão real e profunda entre a mensagem do Evangelho, a Tradição da Igreja e a realidade histórica e transcendente. De fato, foi memorável. A paróquia de Santa Generosa fica no metrô Paraíso, no bairro de Vila Mariana, em São Paulo. Tenho uma foto desta paróquia em uma moldura.  


      O ciclo se encerrou no dia 24 de agosto com Flávio Morgestern. Nesse mesmo dia conversei com o Sr. Décio, – um paroquiano de Santa Generosa -, disse a ele que eu estava me encaminhando à Fé Católica e que gostaria muito de participar da Missa, para conhecer. O Sr. Décio foi muito atencioso e prestativo, sou grato por hoje tê-lo como padrinho. Ele me disse que o Padre Paulo Ricardo estaria celebrando Missa no próximo Domingo. Certamente eu não perderia essa oportunidade. Na manhã de Domingo, 27 de agosto, assisti à Santa Missa – mas não comunguei -, ganhei um terço do padrinho Décio que fora abençoado pelo Padre Paulo. Também recebi oração. Foi muito significativo, marcante mesmo. 


     O padrinho Décio me apresentou à Dona Margarida – também uma paroquiana de Santa Generosa – e, finalmente, ingressei na preparação para receber o Sacramento da Confirmação. Sou imensamente grato à Dona Margarida pela sua paciência, caridade, atenção e afetuosidade. Manifesto gratidão também ao professor Rodrigo Gurgel pelo salutar Ciclo de Palestras, conheci excelentes amigos através desta série de encontros.  


     A Paróquia de Santa Generosa, através da atuação do quase centenário Padre José, e agora do Padre Cássio, possui uma história linda e muito significativa em São Paulo que, certamente, terei o mais completo prazer em conhecer. Honro-me por, agora, fazer parte dela. Rezo para que, com a ajuda de Deus, eu prossiga com caridade e empenho no Caminho da Fé e continue a buscar o conhecimento necessário para apresentar, sempre que for preciso, as razões desta mesma Fé. Ad Maiorem Dei Gloriam. 


    * Fotografia da Paróquia de Santa Generosa emoldurada. 

terça-feira, 9 de junho de 2020

Tipos humanos: O Mecanógrafo



    O inverno parecia se adiantar nos últimos dias do outono paulistano. Levantei-me cedo e, com um entusiasmo com aparência de coragem, saí para o ponto de ônibus, cortando o vento gélido na manhã morta. Era uma segunda-feira. Estava feliz, com um sorriso bobo no rosto, pois eu iria visitar um amigo querido. No transcurso que fiz a pé de casa até o ponto de ônibus todas as cinco pessoas que, assim como eu, saíram de casa naquela manhã gelada, puderam ver meu semblante de contentamento. Mas não pude ver os seus, porque estavam escondidos sob máscaras. Brancas ou azuis, frouxas ou firmes, aquelas máscaras escondiam as pessoas dos meus olhos e dos olhos das outras pessoas também. Se estavam sorrindo ou fazendo careta para o frio, se eram bonitas ou usavam batom, se tinham bigode ou se as maçãs do rosto tinham marcas de espinhas, não sei, não vi. Eu também me escondi, mas só porque o motorista do ônibus disse que se eu não o fizesse, não subiria no coletivo. O ônibus demorara bastante. "Estão de greve?" perguntou um homem velho enquanto tirava a sua máscara afastando-se para fumar. Respondi com um sorriso sem graça que desapareceu quando tirei da carteira o bilhete da passagem.  

    Não havia uma viva alma naquele ônibus que não estivesse cobrindo o rosto. Ao meu lado, um homem de meia-idade usava uma com o brasão de um conhecido time de futebol, estampado no tecido que cobria o espaço anatômico entre o queixo e a protuberância óssea do nariz. Ridículo. Ele estava cochilando. No assento imediatamente à frente do sujeito, havia uma mulher que usava uma calça de moletom justa e, na parte superior, um agasalho que, embora a deixasse protegida do frio desde a tórax até o pescoço, a desguarnecia na cintura, que ficava inteiramente à mostra. No umbigo da moça, um brilhante reluzia com os raios nascentes do sol. Sua máscara era, de longe, a mais estranha: um tecido rosa envernizado com pintas vermelhas estava rendado nas extremidades com adereços de um tecido branco. Parecia uma calcinha. Seus olhos, vivos pelo milagre dos cílios artificialmente longos, despertavam a curiosidade de qualquer um.  

    Em outro assento próximo à janela, uma mulher tinha no meio da cara uma máscara rude, semelhante àquelas utilizadas pelos profissionais que pegam no pesado nas construções ou ganham a vida cortando a grama de gente rica com aquela máquina grande e barulhenta. Era azul com dois pontos brancos equidistantes, pareciam ser feitos de plástico e tive a impressão de que eram, na verdade, pequenas aberturas através das quais a pobre mulher pudesse respirar. Eu a encarei por um longo tempo, tentando decifrar esse seu mistério. Ela, assim que percebeu que estava sendo observada por mim, deformou as sobrancelhas num movimento facial grotesco que me fez desejar jamais descobrir o que se escondia sob aquela máscara. A moça do piercing no umbigo não se comportou assim, quando também descobriu que eu a observava, tratou logo de disfarçar: ficou a olhar para a paisagem que se revelava através da minha janela de modo que os seus olhos, embora não voltados diretamente para mim, pudessem dar à misteriosa dama do umbigo reluzente, uma percepção minimamente nítida do seu observador. Lamentei durante toda a viagem não poder ver o seu rosto.  

    A máscara mais estranha naquele ônibus era justamente a do condutor: preta e robusta, realçava o seu mau humor de estar ali, dirigindo numa manhã gelada de segunda-feira e ouvindo impropérios dos passageiros que, de obstinados, foram impedidos de subir porque não estavam usando a máscara. Ossos do ofício. O ônibus chegou à estação final, onde os passageiros puderam fazer baldeação para os trens e continuar seguindo do subúrbio para o centro. No hall feioso da estação da CPTM dei de encontro com o óbvio: ninguém podia entrar com o rosto à vista. Incontáveis placas estavam afixadas pelas paredes, colunas e escadarias do desgracioso prédio moderno, de maneira que ninguém, salvo se fosse analfabeto, pudesse dizer que não lera o aviso. Na verdade, se o sujeito não soubesse ler, entenderia por força de intuição as novas regras de comportamento nas dependências da estação, tudo o que teria que fazer era observar. Ademais, guardas sisudos vigiavam as entradas, as escadarias, as plataformas e qualquer local propício para o ajuntamento de pessoas. Tudo estava mudado, e não havia nada que um rebelde pudesse fazer. "Conforme-se," dizia eu em pensamento enquanto caminhava para um canto afastado à espera do trem que vinha do Oeste e, durante quarenta minutos, me transportaria para o sentido oposto.   

    No seu itinerário através dos espaços etéreos, o sol já avançara um pouco mais desde que apanhei o ônibus. Agora, eu observava sua ascensão através das janelas herméticas dos novos trens da CPTM. Diferentemente da atmosfera exterior que, com o avançar da manhã, ia ficando cada vez mais quente e agradável, o ar dentro do trem era mantido numa desagradável baixa temperatura. As novidades sob aquele sol não eram boas-novas. As pessoas que outrora riam, conversavam e sujavam os lábios e as mãos comendo amendoim e chocolate dos camelôs, agora eram obrigadas a permanecer num estado de introspecção involuntário que, para a maioria, não era um convite à reflexão ou ao conhecimento interior: era uma prisão, uma punição, uma tortura. Como a síntese da beleza está no rosto, não era mais possível verificar se uma moça que passava era bonita somente olhando para as silhuetas do seu corpo dentro das calças jeans exageradamente apertadas. As belezas ambulantes eram incompletas. A única beleza permanente era a alvorada através das janelas.  

    Para me livrar de ser espremido pela multidão, viajei no último vagão, de onde desci, na estação da Barra Funda, para ver a barafunda dos mascarados comprimindo-se uns aos outros na luta para abandonar o trem apinhado de gente. Era uma multidão de olhos com cílios postiços, maquiagens borradas, óculos escuros, lentes de contato, monocelhas e sobrancelhas que se dirigiam para a Sé. Abaixo dos olhos, as máscaras arfavam, no compasso acelerado da respiração. Eu era um deles, se não fosse, se me rebelasse, se estivesse sem máscara, eu não estaria lá. Agora, transportado do trem para o metrô, onde não havia sol na janela, vi que as pessoas pareciam mais distantes. Cochilavam e tinham os ouvidos ocupados com fones, e as que, assim como eu, se mantinham alertas, desviavam os olhos de tudo que fosse humano.  

    Enfim, desembarquei na estação Sé do metrô, onde me encontraria com meu querido amigo. Como se as saídas da estação que dão para a catedral estivessem interditadas, me dirigi para a saída oposta. Meu destino era a rua do Carmo. Ao emergir do subterrâneo do metrô, foi como se eu tivesse entrado num mundo novo, estranhável mundo novo: uma horda de mendigos e drogados ocupava grande parte da praça, desde a saída interditada da estação até as laterais da catedral. Esta cena, vista de uma certa distância, poderia ser confundida com as antigas pinturas que retratam as feiras medievais celebradas nos entornos de Notre Dame ou de Évora, se os personagens da cena, ao invés de moribundos, fossem comerciantes e aldeões em dia de celebração. Ainda na praça, caminhei até um policial para pedir informações sobre a direção da rua do Carmo, porque, como eu estava habituado a visitar esse meu amigo saindo da estação através dos portões interditados, do outro lado da praça, fiquei confuso sobre como chegaria no meu destino através de um caminho diferente.  

    "Rua do Carmo?" disse o policial. "É o seguinte, você segue por ali, atravessa aquela rua e dobra à direita, no sentido do Poupatempo." Agradeci com um aceno de cabeça e com um sorriso, mas, ao me afastar, percebi que, como no meu rosto só os meus olhos eram visíveis, ele não vira meu sorriso. Segui caminhando no sentido indicado e, enquanto caminhava, tomei consciência de um fato curioso: podia ver claramente os semblantes perdidos dos moribundos, porque eles não se escondiam sob máscaras. Assim, na saída da estação, o primeiro sentido afetado era o olfato, pois o lugar estava tomado por uma atmosfera pútedra que emanava dos dejetos dos mendigos e das suas roupas sujas, logo que se subia as escadas, contudo, o sentido da visão capturava o complemento do olfato e aquela realidade imunda tomava forma completa. Passando por entre eles, vendo o estado de miséria em que se encontravam, não pude deixar de alimentar uma centelha de revolta por aquele descaso. Quem os abandonou? Eu, eu os abandonei. Me recusei a dar esmolas e a comprar os seus amendoins, mesmo ouvindo o apelo sincero de que as moedinhas dos amendoins eram para o pão e o leite das crianças que ficaram enroladas sob cobertas imundas em algum canto escondido da praça. Ou, talvez, era para abastecer a algibeira do moletom imundo com mais entorpecentes e o copo frágil de plástico branco com mais aguardente.  

    A Catedral da Sé de São Paulo, o quinto maior templo gótico do mundo, estava com as portas fechadas. O Covid era a causa, ou a desculpa que as tão preocupadas autoridades encontraram para impedir que as pessoas frequentassem a missa, que ficassem reclusas em casa e, se ousassem sair, que usassem máscaras. Por isso a multidão no subterrâneo do metrô as usava, mas e os moribundos da superfície? Por que não as usavam? Porque, na verdade, ninguém se importava com eles; nem eu, nem a moça bonita do ônibus, nem o policial que permaneceria indiferente ao meu sorriso se o visse, nem o governador que, semanalmente, se apresentava de gravata na tevê e interpretava seus discursos recheados de preocupação com os necessitados, com os pobres, com os moribundos. Ninguém. Nem eles consigo. A degeneração é o nosso castigo por infligirmos o segundo mandamento. O progresso, com suas curvas ilógicas, é a materialização da nossa perdição. Somos feios e sujos e doentes e maus. 
               
                                                                                                     * 

    Não era o asco de ureia que preenchia o ar. Um perfume fraco de madeira velha e de lombadas de livros centenários restaurados permeava o novo ambiente: eu chegara, enfim, à oficina do mecanógrafo. "Sr. Oliveira!" disse eu. "Você está diferente da foto, rapaz," respondeu ele, sorrindo. A rua do Carmo fora, outrora, o centro nervoso de onde irradiava a oferta de produtos e serviços referentes à máquina de escrever. Desde os modelos mais variados até os serviços de reparo mais complexos podiam ser encontrados nos entornos da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte. Com o avanço rápido e impiedoso dos computadores, esses serviços, contudo, caíram no esquecimento, porque as novas tecnologias tornaram as máquinas obsoletas. Mas, para aqueles que viam ainda nas engrenagens das typewriters algo para além do mero pragmatismo ultrapassado, profissionais remanescentes se orgulhavam de poder atendê-los. Eram os mecanógrafos. Na rua do Carmo e nas suas adjacências, dois ou três estabelecimentos resistiam. E um em especial ostentava a preferência dos velhos que se negavam a aprender a usar um computador e dos jovens entusiastas da máquina de escrever.   

    O primeiro nome do Sr. Oliveira era Ronaldo. Mas engana-se quem achar que o homem, porque era um autêntico representante de uma profissão antiga e quase extinta, gostava de uma boa formalidade. Não. Eu o chamava assim por respeito e admiração e também porque sua oficina levava o nome de Oliveira Typewriter. Era um homem de estatura mediana, com uma saliência abdominal e que falava com sotaque do Sul. Nasceu nos campos de Piratininga, mas fora criado na municipalidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Muito jovem, porém, abandonou a vida pacata no Sul para regressar à sua terra natal. De volta a São Paulo, chocou-se com a dinâmica da grande metrópole. "Fiquei impressionado com aqueles ônibus elétricos!" contou. Fora empregado no setor de lavanderias, onde, segundo disse, mostrou-se prestativo e perspicaz. O homem se orgulhava da instrução que recebera no ensino fundamental e a exibia com orgulho e confiança. De fora, quem o via assim, a falar um português impecável enquanto expunha a história das máquinas de escrever, desde o avanço da forma das engrenagens, dos detalhes e peculiaridades dos modelos até às implicações culturais, econômicas e políticas que essa maravilha mecânica representou para os homens que nasceram no século XIX e viveram no século XX, não diria que ele detinha apenas o curso primário.  

    Para o indivíduo que descobriu que pode saber por saber, que pode alcançar, mediante o esforço próprio, a compreensão de aspectos da realidade que o interessam verdadeiramente, sem que ninguém o obrigue a fazê-lo, os seus limites são determinados pelas fronteiras mesmas da sua vontade. Ao conversar com o homem, notei que seus conhecimentos ultrapassavam em muito tudo o que aprendera na escola e que, visto o seu poder de síntese, nem mesmo os mancebos universitários se equiparavam a ele. As injustiças sofridas por Nikola Tesla por causa da inveja de Alva Edison e dos interesses obscuros da CIA que, no fim da vida, o roubara; a disputatio entre Alberto Dumont e os irmãos Wright; o reinado do cruel Ramsés, irmão adotivo de Moisés; as civilizações Maia, Inca e Asteca. Sua peculiaridade era uma força de interesse admirável que o levava e empreender pesquisas com método e o conduzia a um entendimento profundo dos seus objetos de interesse.  

    O mecanógrafo não era um acadêmico formal, mas ostentava um vigor intelectivo de fazer sombra em muitos aspirantes. Seu método era simples: ler e estudar tudo o que caísse em suas mãos sobre quaisquer temas que lhe parecessem interessantes. Contudo, o homem não conseguiu dominar um método de análise da realidade que se afastasse dos velhos clichês marxistas. Suas opiniões sobre história e religião, por exemplo, não conseguiam se desvencilhar do prisma da disputa pelo poder; sua compreensão sobre a consolidação das grandes civilizações e das grandes conquistas da tecnologia, por exemplo, estavam na clave da luta de classes. "Tudo é pelo poder," dizia ele. Isso porque, provavelmente, os seus livros dos anos 60 e 70 publicados no Brasil estavam cheios de ideias que explicavam as coisas através da clave do conflito permanente. Mas, isso de modo algum é um demérito, pois o Sr. Oliveira tem um senso moral que não permite qualificá-lo como marxista ou como qualquer outra coisa que não seja um indivíduo com interesse real por aquilo que prende sua atenção.  

    Seu pai, Ruy de Oliveira, fora escritor numa época em que a exigência para exercer o ofício da escrita, seja em jornais, periódicos, rádio ou teatro, era o domínio da língua e, claro, o conhecimento da sua literatura. Esta época reconhecia que o conhecimento conquistado por um homem era resultado do seu esforço, do seu mais sincero interesse. Hoje, se um sujeito quiser ser escritor com o aval do establishment, deve submeter sua inteligência não à cosmovisão da alta cultura, dos ideais da civilização, mas à perspectiva sem longo alcance daqueles que assinam o seu diploma.  Numa conversa franca, o Sr. Oliveira contou como o seu pai transitara por entre os artistas do rádio, do teatro e da tevê com a maior naturalidade, desfrutando da humildade (entendida aqui fora da sua acepção vulgar, mas no sentido de senso do real) dos artistas, atores e escritores que estavam na ativa nos idos de 1950. A época de estreia da televisão no Brasil fora também o auge, que se estendeu até o início da década de 1980, de um tipo de gente superior: as gentes educadas. "Meu pai conheceu muita gente importante na época, muitos artistas do rádio. Mas eles não eram como esses supostos artistas que temos hoje em dia, não, eles eram diferentes; eram acessíveis, educados, cordiais. Não tinham o nariz empinado. Se, por exemplo, nos bastidores dos ensaios de uma radionovela, faltasse alguém, qualquer um ali que levasse o mínimo jeito para a coisa era chamado para substituir o ator ausente."  

    O pai do mecanógrafo fora um dos fundadores do Teatro Novos Comediantes, em São Paulo e ingressou no rádio através de suas amigas Carmem Silva e Norah Fontes. Ruy de Oliveira poderia ser objeto de uma outra crônica, mais profunda e densa. Ele conviveu com muitos artistas de sua época. Seu filho me contou que, certa vez, enquanto se deslocava através da cidade de São Paulo para levar um cheque referente ao cachê de Hebe Camargo, sua amiga, encontrou, na entrada do hotel onde a "dama da televisão" estava hospedada, Edith Piaf cercada de jornalistas e fotógrafos. Perguntou à Hebe: "Quem é aquela baixinha?". Sua interlocutora disse, exclamando: "Ruy, você não sabe?! É Edith Piaf!". "Aquele foi o maior mico da vida do meu pai," disse Ronaldo. De todos os artistas que conheceu, um em especial me chamou a atenção: Geny Prado, que contracenara com Amácio Mazzaropi em muitos de seus filmes. A madrasta do Sr. Oliveira fora Odette Liz, novelista e atriz de sucesso e ganhadora do troféu Roquette Pinto.  

    Alguns homens têm a sorte de participar de muitos acontecimentos, outros, porém, sorriem à sorte de poder ouvi-los narrar os tais acontecimentos. O que, sob a tépida e erótica vista da musa da literatura, é a mesma coisa, pois, através da suspensão da descrença, participa-se das histórias ouvidas. Ronaldo Oliveira apresentou-me sua oficina e o seu pequeno museu. E, para cada objeto ali conservado com zelo, o homem contava uma história. Seu museu particular mantém peças ecléticas, objetos curiosos que, se antes foram versáteis para o uso pragmático, agora eram versáteis para a imaginação. Bicos de pena, algumas moedas dos tempos de Getúlio, a vassourinha de Jânio Quadros (ainda precisamos dela!), condecorações de concursos de datilografia, máquinas fotográficas, binóculos de bolso para o cidadão levar para o teatro e ver, maravilhado, as silhuetas das damas sob os bordados dos decotes e, claro, máquinas de escrever, muitas delas.  

    Desde os primeiros protótipos vendidos ao público a preço de um cavalo nos idos de 1873, até as psicodélicas e esquisitas máquinas de plástico dos anos de 1980. Estão todas lá, perfiladas sobre prateleiras e móveis adjacentes às paredes, num grande móvel no centro da sala e, no chão, sob as mesas. Centenas de máquinas de escrever testemunham a grandiosidade do engenho humano. E o Ronaldo, com sua aparência de meia-idade e com sua saliência abdominal, que de tudo entende, passeia por entre elas como um pastor entre as suas ovelhinhas queridas, chamando-as todas pelo nome. No antigo prédio onde ele mantém sua oficina, há uma vizinha adorável, dona Jaqueline, que diariamente serve ao mecanógrafo seu almoço, pontualmente quinze minutos antes das três da tarde. A amável Jaqueline me serviu um caprichoso misto quente acompanhado de uma generosa caneca de café. Não sei se tal regalia é ofertada a todos os clientes que visitam a oficina, não perguntei, mas desconfio de que só os muito interessados nas conversas e nos objetos curiosos têm o privilégio da bondade da vizinha do mecanógrafo.  
   
    De saída, ganhei do Ronaldo um prego enferrujado. Sua oficina, na rua do Carmo, fica ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, edificada no início do século XIX. Fora em seu singelo campanário que primeiro badalou os sinos de 7 de setembro de 1822. O templo estava em reforma e o Ronaldo, observando diariamente o movimento dos trabalhadores, se deixava intrigar com a quantidade de material, madeira sobretudo, descartado como refugo. Um dia, porém, perguntou ao engenheiro responsável pela reforma, "um pentelho," como ele disse, se poderia ficar com alguns pregos presos às vigas de madeira de lei do telhado que estavam sendo substituídas. "Não, porque isso aí é patrimônio," fora a resposta do engenheiro. "Mas vocês vão jogar fora!" Replicou o Ronaldo, já encolerizado. Diante da má vontade do engenheiro pentelho, Ronaldo retirou-se. No outro dia, entretanto, ao caminhar para o trabalho, passou pela igreja e viu, embasbacado, as vigas bicentenárias jogadas numa enorme caçamba próximo ao templo católico. Foi até lá e pegou alguns pregos, pedaços enferrujados da História. Quando viu o engenheiro contratado pela prefeitura, gritou: "Olha aqui o patrimônio que vocês jogaram no lixo!" Isso ele me contou pouco antes que eu saísse, acrescentando: "Fique com esse," e me entregou um enorme prego retorcido e enferrujado, "alguém o martelou lá no telhado da igreja antes dos tempos em que Dom Pedro dava uns amassos na Domitila." 
  
    Fiz o itinerário de volta para casa, no longínquo subúrbio, pensando em como os mistérios da condição humana se revelam nas coisas mais simples, nos detalhes mais singelos do cotidiano. Olhar com atenção as pessoas nas ruas, no metrô, nas praças, nas distantes janelas dos apartamentos ou nas trepidantes janelas dos ônibus, na saída das missas ou nos portões dos cemitérios... Se a vida é mesmo a arte do encontro então que ele seja memorável, porque os desencontros pela vida são as recordações perdidas. 

  Alice se despede    Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seu...