sexta-feira, 27 de novembro de 2020

As boas obras de um chato de galochas

     

    "A fé sem obras é morta", disse eu. Pra quê?! Despertei a cólera do meu interlocutor que, sentado à mesa comigo, queria a todo custo me fazer abandonar a Fé Católica. A conversa, na verdade, seguia amistosa e, de minha parte, carregada de bom humor. Era mais um daqueles diálogos sobre Religião que acontecia frequentemente em casa e nos quais eu me envolvia com prazer. Meu interlocutor tentou desconversar, negar o que eu acabara de dizer, invalidar a realidade da implicação das boas obras na salvação da alma. Tentei explicar o que eu entendia sobre o tema: "Fulano, as boas obras são a prática do amor ao próximo. O amor não é um mero sentimento de simpatia abstrata pelo outro. Não. É, antes de tudo, uma ação concreta e objetiva na realidade e é claro que isso implica nas boas obras, ora!". Percebi, então, que o meu interlocutor tinha plena consciência disso, ele não era tão estúpido assim. Percebi também que havia algo no seu comportamento que ele tentava dissimular: o sujeito, na verdade, se sentia muito incomodado com as palavras que eu utilizava. Ele, que era um protestante, torcia o nariz toda vez que ouvia a expressão "boas obras", como se isso fosse coisa feia, desprezível. Que diatribe é essa?! Ora, eu só pude chegar a uma conclusão: a degeneração chegou a tal nível que as pessoas têm reações psicológicas às palavras sem nem sequer se darem conta disso e, pior, com isso elas se afastam da realidade, trocam-na por um superficialismo perigoso no qual tudo o que importa é seguir os ditames desta ou daquela doutrina a despeito dessas coisas serem ou não reais. 

    O meu interlocutor tinha asco das palavras que lhe soavam "católicas demais". Era isso. Ele não imaginava que as palavras tivessem referentes na realidade, que elas tivessem que se referir às coisas existentes em possibilidade e em imaginação. Ora, se as boas obras expressam as ações objetivas que eu tenho para com o meu próximo, como raios eu poderia pensar que isso não pudesse implicar na salvação da minha própria alma? A expressão "boas obras", por acaso, não tem uma significação real para o indivíduo que se beneficia delas? O que é isso, senão amor ao próximo? O amor ao próximo existe apenas como abstração? Se não, como expressá-lo? É subentendido que conversávamos sobre a percepção protestante da salvação da alma. "Sola Gratia" salva o homem. Ele insistia que, estando eu predestinado ou não à salvação, não havia nada que pudesse ser feito para mudar o que fora de antemão decidido por Deus. Então, tentei mais uma vez dizer o que eu entendia sobre o tema: "Fulano, somente Deus detêm a perspectiva onisciente da realidade, Ele não está preso à temporalidade, portanto, é óbvio que para Ele todas as coisas estão predestinadas. A questão não é essa. Nós existimos em Deus e, portanto, participamos da sua liberdade -- e Ele não está predeterminado a nada".

     "Veja", continuei, "Christo, quando questionado sobre quando seria o Dia do Juízo, disse que não sabia, que isso era conhecimento exclusivo de Deus Pai. Estranho! Jesus Christo é o Logos Divino, como não saberia de uma coisa dessas?! A resposta é simples, fulano: isso significa que o Dia do Juízo não está predeterminado por Deus, mas será fruto de sua decisão exclusiva; será fruto do uso da liberdade divina. Deus Pai é a onipotência, Deus filho é a onisciência. Ele nos permitiu a participação de uma parcela infinitesimal da sua liberdade, com a qual podemos amá-lo. A tensão entre o Determinismo e o Livre-Arbítrio em nós é real, porque, se nada nos estivesse predeterminado, então teríamos a liberdade divina integral e, por outro lado, se tudo nos fosse predeterminado, então isso significaria dizer que Deus nos vê apenas como coisas, não como entes que participam da sua liberdade".

    Ele me ouvia cada vez mais interessado. Tentei explicar que essa tensão é real, que tentar entendê-la só dá dor de cabeça, porque nós somos parte integrante do problema. Nós somos o problema. Não podemos nos colocar para fora da realidade e julgar a causa da Predestinação e do Livre-Arbítrio; nós estamos no meio desse tiroteio. Cada vez que escolhemos algo, nós o fazemos entre os elementos que estão aqui, na realidade. É impossível fugir da tensão entre as duas coisas, porque a própria existência humana acontece sobre essa tensão, ela está presente na nossa vida. Finalizei o diálogo colocando mais café na xícara e dizendo: "Sabe, fulano, uma das coisas mais cretinas do mundo é tentar explicá-lo através de termos imprestáveis. Se essa ou aquela palavra não serve para explicar isso ou aquilo -- pelo contrário, só aumenta a confusão --, então por que usá-la?". Por fim, arrematei: "Vá praticar boas obras e deixe de ser besta!". 

    

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O Curioso Comportamento d'uma Jovem Astróloga nas Redes Sociais -- Crônica.


*

  Estava eu a correr os olhos pelos stories de uma certa moça no Instagram, quando, subitamente, deparo-me com uma imagem que fez os meus instintos do baixo-ventre se atiçarem sobremaneira: tratava-se d'uma foto na qual apetitosos pães de queijo eram soberbamente exibidos. Com a boca cheia d'água fui, no impulso, cumprimentar a prendada autora daquelas obras-primas gastronômicas. Lancei mão d'uma linguagem carregada de empolgação, de contentamento, mas, porca miséria!, não fui bem interpretado. Encantado pela imagem convidativa, eu disse que abandonaria São Paulo e desceria mais para o Sul, a fim de encontrar-me com a donzela que fabricara aqueles benditos pães de queijo. Em tudo isso, claro, estava subentendido, na linguagem hiperbólica, o gracejo inocente que só pretendia expressar a alegria de ver um dos meus pratos diletos tão bem preparados, tão bem acabados na foto. Ledo engano! A moça que, segundo consta nos seus perfis, é versada nas investigações astrológicas da realidade, além de também dominar a Cartomancia e, pasmo-me eu, saber dançar a perigosa dança do ventre, achou que eu a estava cortejando. Eu, que nada sei de Astrologia, que não tenho domínio algum da interpretação da linguagem simbólica do Cosmos, que, tudo o que fiz, foi me deixar embasbacar pelos pães de queijo, estava agora a cortejar o coração d'uma donzela que nunca vi mais gorda ou mais magra na minha frente. 

    Que coisa esquisita! A astróloga, agora ressabiada, lançou mão do escudo contra um inimigo que nem espada carregava. Disse que seu coração pertencia a um carioca que, assim como eu, prometera descer mais para o Sul para comer-lhe os pães de queijo e consultar-se sobre os detalhes ocultos da sua vida com os poderes místicos da pretendida namorada. E mais, escreveu-me um longo texto no qual narrava o quanto o tal carioca era versado em não sei que arte da guerra, que mataria qualquer um que se lhe atravessasse o caminho entre o Rio e o Paraná -- se não me falha a memória do local da residência da mística do Instagram. Pois bem, eu fiquei mesmo encucado com a situação. Nos últimos meses, comecei a querer saber mais sobre Astrologia -- esse fora o real motivo que me levou a tê-la nas redes sociais --, mas, pensei, se ela assim discerne as figuras de linguagem, como discernirá as figuras do céu? Não! Eu não me consultaria com ela nem se me caísse nas mãos uma carta psicografada com o remetente do próprio Nostradamus recomendando-me os seus serviços. Mas, como o coração tem razões que a própria razão desconhece, ignore-me o leitor, porque sou um fingidor. Eu queria mesmo era ir para o Sul, comer pão de queijo e ser feliz. 

    * bati esta foto da página 183 da 3º edição do livro O Jardim das Aflições.  

domingo, 22 de novembro de 2020

Conto: 35 Mil Pés

    


    Apesar da expectativa que provocava dor de barriga de ansiedade, Inês, consciente de que o voo percorreria um intervalo de tempo de dez horas, caminhava para adormecer profundamente, recostando-se na confortável poltrona da segunda classe. A aeromoça trouxera amendoim, Coca-Cola diet e água com gás. Inês, sem pensar, comeu o amendoim, uma generosa porção de amendoim japonês muito bem embalada numa daquelas cápsulas que só existem nas cozinhas das companhias aéreas e das agências espaciais. Dizem que os astronautas não comem amendoim com casca, porque essa parte do alimento poderia facilmente se desprender enquanto o explorador do espaço levasse a leguminosa até a boca e as partículas, ao serem atraídas para a corrente de ar artificial da nave, poderiam, como num efeito borboleta, desencadear o colapso de toda a estrutura. Se isso acontecesse, na Terra veríamos um tímido clarão do rastro d'um meteorito, qual estrela cadente, mas não seríamos capazes de imaginar que a composição do objeto era, na verdade, uma nave espacial com seus tripulantes que, dentre os quais, pelo menos um carregava amendoim nos intestinos. Inês teve a dor de barriga revigorada. 

    Despertou e foi ao banheiro do avião. Não houve turbulência. Quando regressou à sua poltrona, a moça aliviada entregou-se novamente ao sono profundo. Sonhou. Inês andava a cavalo num local ermo, fazia um tórrido calor e ela estava nua, o animal era fogoso, mas a moça não sentia medo. Ela não tinha consciência clara de onde estava, em sonho parecia ser no campo, em alguma propriedade rural. Inês passou parte da adolescência na fazenda dos seus avós, no interior do Estado de Mato Grosso. Seu primo a levava para ajudar com as cordas quando tinham que cuidar do acasalamento dos equinos da fazenda. Foi há quatro anos, ela tinha quinze quando viu aquilo pela primeira vez. Sentiu a terra tremer, assustou-se com os primeiros relinchos dos animais, ouviu o macho esbaforir e, das suas ventas dilatadas, viu escorrer o muco em mil perdigotos embalados pelos relinchos. O cheiro do celeiro impregnava-se nela. "Força, Inês!", gritava seu primo, "não deixa ele sair, ainda não acabou". Depois do primeiro jato, era natural que o animal buscasse se recompor, recuperar as forças que lhe foram drenadas, era então que seu primo, com um sorriso de satisfação, como se ele mesmo fosse o agente da fecundação da égua, dizia à assustada prima: "Pode soltar!". Depois, quando sua avó a chamava para o almoço, a menina comia com maior apetite, lambendo os dedos engordurados com o sumo do peru que sua avó cozinhava tão bem. Essas memórias foram conservadas no seu subconsciente e eram elas que davam vida às sensações do seu estranho sonho. 

    O animal começou um trote tímido mas constante, e Inês, também timidamente, esboçou um sorriso de satisfação. Aquilo era um oceano de sensações. Ela, nua no cimo do cavalo, sentia os pelos macios do animal afagando-a carinhosamente, no ritmo do trote. O vento que movimentava a crina do equino e os cabelos da moça trazia um perfume agridoce que penetrava fundo nas narinas de ambos. O trote evoluiu para o galope. Sua satisfação aumentava, transmutava-se num prazer constante e crescente, ditado pelo ritmo dos cascos do fogoso equino. Subitamente, o animal parou, esbaforindo. Inês apeou e, sem saber como, se viu às margens d'um rio; uma corrente de água cristalina. Foi entrando, deixando as águas tocarem o seu corpo frágil e no viço. Na medida em que as águas subiam, uma coisa estranha acontecia: ao invés de aliviar o calor de Inês, o mergulho no rio o aumentava, fazendo a moça cair num exótico delírio de satisfação tocando os píncaros do prazer no leito do rio. Mergulhou plenamente. Inês sentiu um toque quente e gentil no pescoço. Despertou e viu que a aeromoça acomodava seu travesseiro que ia caindo com os seus movimentos na poltrona. A empregada da companhia aérea tinha um sorriso de cumplicidade circunscrito pelo vermelho do batom. 

    A jovem mulher percebeu algo molhado em si. Urina não era, Coca-Cola não era. Inês se recusava a acreditar que aquilo acontecera ali, a 35 mil pés acima do Oceano Atlântico. Talvez fosse influência d'alguma força telúrica, d'algum magnetismo atmosférico, daquelas ondas de energia que arrastam os aviões e os navios para baixo, para as fossas abissais. Inês dirigiu um olhar líquido para a aeromoça, como se quisesse confidenciar-lhe algo. Esta, depois de contemplá-la por um breve momento, abaixou-se ao lado de sua poltrona, acariciou gentilmente o seu rosto e, ao pé do seu ouvido, disse, sussurrando: "Eu sei o que aconteceu, meu bem, eu a vi se estrebuchar na poltrona, você estava friccionando as mãos por dentro das calças até isso acontecer. Mas, não se preocupe, acho que ninguém percebeu. Levante-se discretamente e vamos até o banheiro, eu vou ajudar você". Foram. Houve turbulência. O comandante da aeronave deu ordens para que todos, passageiros e tripulantes, colocassem os cintos, pois o avião ingressara num turbilhão de nuvens incomum, criado pela colisão entre duas massas atmosféricas heterogêneas. 















sábado, 21 de novembro de 2020

Cogito ergo Mussum


    "Minha esperança é que os meus alunos, com o tempo, consolidem um genuíno estilo brasileiro de alta cultura: inseparavelmente popular e erudito, engraçado até ao ponto de matar de rir, com clarões de lucidez escandalosa que pareçam loucura à primeira vista. Sem folclorismos veados. Profundamente cristão sob uma aparência enganosamente obscena. Aristóteles no programa do Alborghetti. Cogito ergo Mussum. Isso há de acontecer, se Deus quiser."

    Olavo de Carvalho em publicação no Facebook datada de 31 de janeiro de 2014. 



quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Honra aos Burgomestres!





   


*


    Às bem-aventuradas criaturas residentes em outras cidades do Brasil-Pindorama: tirem os pangarés da chuva, São Paulo é uma cidade feia, vocês só vão levar tristeza daqui. O centro que, em tese -- sim, em tese escrita, revista e ampliada --, deveria ser o resguardo da memória, da consciência histórica do povo paulista e paulistano, é uma imundície digna dos círculos mais terríveis dos infernos dantescos. As fachadas dos prédios centenários são vitrines de fealdade: os adereços de estilo, os motivos vegetais, por exemplo, caem, mofados pelo tempo e desprezados pelos moradores que, quando não são pobres imigrantes -- bolivianos, sobretudo, explorados pelas fabriquetas têxteis que proliferam pelas bandas do centro e adjacências -- são especuladores imobiliários que não só tiveram sua sensibilidade para a harmonia das coisas destruída, mas como também o próprio senso de beleza. É o tal do topa tudo por dinheiro. São Paulo caminha a galope para multiplicar as suas ruínas. Eu me pergunto: por que os gajos concorrentes à chefia da Câmara Municipal, quando lançam seus perdigotos nos microfones dos comícios, não citam meia palavra em prol da restauração do centro, dos prédios históricos, dos marcos arquitetônicos altamente simbólicos para a manutenção da memória do povo? Nunca, minha gente, nunca o desejo de foder com tudo fora tão profundo na longa e peculiar história das prefeituras pelo mundo. Nesse sentido, as excelências do Palácio do Anhangabaú equiparam-se somente aos sheriffs de Sodoma e Gomorra. Grandes gestores! 

    * Tirei estas fotos numa tarde chuvosa quando passei pelo Sebo do Messias, na Praça João Mendes, atrás da Catedral da Sé. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O Fim do Mundo

*


    O indivíduo humano é guiado através da realidade pelos dados que lhe chegam pelos sentidos e, abstraindo tais dados, ele chega à intelecção objetiva que possibilita o juízo, o crivo de análise das coisas. As informações, portanto, são determinantes para a tomada de decisões e, nesse sentido, grande poder têm aqueles que detém os veículos de informação. Não é necessário, portanto, fazer grande esforço para perceber que a mídia mundial é um instrumento de controle comportamental que se vale, sobretudo, da linguagem. Através de um sofisticado sistema de manipulação da linguagem que, diga-se, é uma verdadeira máquina de corrupção, de destruição completa dos sensos de proporção, a mídia condiciona as pessoas a agirem de tais ou quais formas. Os consumidores da grande mídia, depois de perderem a sua força intelectiva individual, passam a defender ideias e comportamentos que, antes, não o fariam de livre e espontânea vontade. A realidade é subjugada pelos referencias ideológicos. Daí o gatilho para o despertar do comportamento apocalíptico que vemos no nosso cotidiano. 

    A tevê, o cinema e as plataformas de entretenimento da internet mostram, a todo momento, imagens, signos e referências de um iminente apocalipse. "O fim está próximo!". É curioso notar que, presente nessa linguagem apocalíptica, está todo um quadro, um esquema sofisticado de modelos de como agir nessas circunstâncias catastróficas. Depois de um holocausto nuclear, depois de um cataclismo global, de tsunamis, de terremotos, de colisões de meteoritos contra a superfície da Terra e, de quebra, depois de uma guerra de proporções mundiais, os atores ensinam, com admirável precisão, como o cidadão comum deve agir -- se sobreviver. E, claro, o principal do retrato sinistro são os contornos da política, da "nova política" decorrente dos novos tempos. O "admirável mundo novo" que se segue à hecatombe clama por uma "nova ordem mundial". E lá estão, na mídia, os novos parâmetros de comportamento que todos devem seguir. Desprezá-los é se candidatar à implacável perseguição daqueles que foram amestrados pelo sistema do mundo. E a perseguição é cruel. 

    Contudo, a realidade é muito mais abrangente do que os canhestros limites da perspectiva da beautiful people, dos âncoras dos telejornais, dos atores das telenovelas, dos youtubers, dos blogueiros, dos velhos e novos candidatos aos cargos públicos que se travestem de palhaços a cada quatro anos, dos especialistas universitários, dos engajados em causas sociais ou ambientais.  A realidade é sua única e perfeita testemunha, as coisas são como são e a força da mentalidade revolucionária, que intenta perverter a visão do real, sucumbi ante o fato de que o homem não tem o domínio da perspectiva onisciente da História. A arrogância dessa perspectiva leva à loucura, à perdição. No entanto, existe uma função pedagógica nessa tensão apocalíptica: ela serve precisamente para nos manter alertas sobre o que virá e para nos manter confiantes no Verbo Divino, no Salvator Mundi, em Christo, o Senhor da História, o Onisciente condutor do mundo. 

    * Tela "O Fim do Mundo" (1851-1853), do pintor romântico inglês John Martin, mostra a destruição da Babilônia e do Mundo. 


















  Alice se despede    Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seu...