domingo, 31 de janeiro de 2021

Sob a máscara -- Crônica.

 

    
    Cheguei à estação, comprei o bilhete, venci a catraca, subi e desci dois lances de escadas e tomei o meu lugar na plataforma. Não houve demora. Num movimento rápido de cabeça, vejo chegar o comboio vermelho da CPTM. Só não entrei rapidamente, como faria por instinto, porque cedi espaço a uma senhora que se avizinhou de mim no momento exato em que o trem abria suas portas. "Opá!, pode passar, senhora!". Como fosse uma tarde de domingo, não houve concorrência para tomar os assentos. Sentei-me desconfortavelmente num daqueles bancos ordinários da Companhia Paulista, mas, repare, não digo isso pelo puro prazer da queixa, como as pessoas fazem comumente, é que tenho proporções físicas incomuns -- se minha patela falasse, não haveria dicionarista capaz de catalogar-lhe os impropérios. Depois de desviar a mente dessa pequena injustiça dominical, olhei através da janela (permanentemente hermética) e passei a contemplar o pôr-do-sol. Seguia do subúrbio para o centro, nesse domingo eu iria comungar na

    Passaram-se duas estações até que uma moça bonita veio sentar-se ao meu lado: tinha olhos verdes-mel-com-limão, cabelos castanho-claros e um longo pescoço; usava uma camisa social e uma calça preta de tecido leve. Estava, portanto, decentemente vestida para o meu crivo de modéstia, mais hesitante do que exigente. Talvez por ser dia santo e eu estar a caminho de cumprir o preceito, tentei ignorá-la instintivamente, como se tivesse receio de ter de acrescentar mais uma violação ao IX Mandamento. Distraí-me com as publicações da minha rede social, especialmente com uma que ironizava a implicância que algumas pessoas fazem àquelas que vivem com a cara pregada na tela do celular: uma foto tirada do interior de um bonde na São Paulo dos anos 1920 mostrava todos os passageiros com a cara pregada no... jornal! A diferença está no fato de que os celulares são mais práticos, porque são compactos, não preenchem todo o espaço à frente do leitor como as imensas folhas brancas dos jornais de outrora que, além de incomodarem pelo tamanho, irritavam também pelo farfalhar das páginas quando viradas. Pois bem, a moça ao meu lado não estava olhando para o celular, ela tinha mais interesse no pôr-do-sol através da minha janela. 

    No ônibus, no trem ou no metrô é mais fácil observar com naturalidade as moças que estão ligeiramente distantes porque, se os olhares se entrecruzarem, basta um desvio rápido para um ponto qualquer, menos interessante e perigoso. E quando, por fatalidade, acontece um encontro de olhares, um estranho e visceral reflexo de afastamento é desencadeado, como quando o sujeito aproxima o dedo da chama de uma vela ou quando, por puro divertimento, acende um palito de fósforo e espera que as chamas consumam toda a extensão da pequena peça de madeira, até fazer cócegas nos dedos. Dor e constrangimento. Penso que se um estrangeiro, olheiro de alguma agência de moda, viesse à Pindorama com o propósito de aliciar as beldades do seu gosto, ele não teria grande dificuldade em encontrá-las: bastaria se locomover de condução. Numa simples e rápida viagem até o centro da cidade, o passageiro tem uma mostra de praticamente todos os tipos e biótipos característicos da sociedade. Eu tinha certeza de que a moça ao meu lado era uma dessas beldades, mas eu não me atreveria a olhá-la mais, era impossível. 

    Seguimos, então, sentados lado a lado, em nossa peregrinação do subúrbio para o centro. Os passageiros que nos faziam companhia estavam todos perscrutando as telas dos seus celulares, exceto a senhora que recebera minha gentileza ao embarcar, a idosa mantinha os olhos em qualquer ponto vago do piso do trem à sua volta, ou em qualquer movimento interessante que surgia através da janela. Pude observar que trazia um rosário em torno do pulso, talvez estivesse a caminho da missa também. Antes de chegarmos à estação Barra Funda, que, com o perdão do trocadilho tão fácil, deixa de ser uma barafunda aos domingos, ouço um abafado "moço, por favor, que horas são?" em voz de mulher. Era ela, a donzela ao meu lado desejava saber a quantas andava o deus Hélio através do seu percurso pela abóbada celeste. Ele ia adiantado, pois já era quase noite. Sua pergunta me causou estranheza, ela quebrou a atmosfera de silêncio do ambiente, eu esperava ver o seu rosto, mas não ouvir a sua voz. "Quinze para as sete", respondi sorrindo. A moça não carregava um celular. Tão estranho quanto ouvir sua pergunta e me ver, assim, transformado num participante indireto das suas cogitações, foi perceber que a moça não pôde ver meu sorriso quando respondi. De alguma forma imprecisa, isso me perturbou. Três minutos depois, chegávamos à estação Barra Funda. "(...) Ao desembarcar, cuidado com o vão entre o trem e a plataforma". Levantamos, demos alguns passos; abriu-se a porta, desembarcamos. Ela ia à minha frente. Antes de subirmos as escadas, porém, eu parei, tive um pensamento súbito, do tipo mesmo que faz um homem parar, estancar: "Ela não me viu sorrir", pensei, em devaneio, "mas... também não a vi sorrir, não sei... talvez ela tenha sorrido quando respondi". 

    Acho que permaneci nesse estado de devaneio por um longo tempo, porque, próximo a mim, encostada na amurada da estação, aquela senhora que se beneficiara de minha gentileza quando de seu embarque, há meia hora atrás, me olhava com curiosidade e algo mais. Notei que a região em torno dos seus olhos franzia-se ligeiramente, assim como sua testa; e suas orelhas faziam um movimento engraçado, assim como seu abdomen. A velha não estava rindo, mas gargalhando de mim, divertindo-se soberbamente com a minha situação. Dei de ombros. Não tinha como saber com certeza, todos nós usávamos máscaras. 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Por que você escreve?

 


    É fácil encontrar e, como diria minha avó, se aprochegar de quem nutre os mesmos gostos que você. Hoje, com a onipresença da internet na vida cotidiana, estabelecer contato e quiçá amizade com quem partilha das mesmas preferências que você é uma vantagem civilizacional tremenda. Se nós, humildes e ingênuos usuários da rede mundial de computadores, faremos uso deste meio por muito mais tempo, é uma questão que não cabe aqui. Vamos levando a vida dentro dos exatos limites das possibilidades como, aliás, sempre fizemos -- conformados ou a contragosto. Assim, no meu simples cotidiano de estudante autodidata, leitor e acumulador voraz de livros, facilmente descubro novos colegas amantes de literatura. Eles escrevem, mantêm blogs, sites, revistas eletrônicas, redes sociais, etc., no entanto, para meu desgosto -- porque gosto de conservar aquilo que amo --, raramente escrevem bem. Geralmente, esses bibliófilos das internets só estão preocupados mesmo com a exibição das suas estantes apinhadas de livros (nunca lidos) nas redes sociais. Quando falo em escrever bem, quero dizer simplesmente que eles não têm a genuína preocupação em exprimir, da melhor forma possível, suas experiências com a realidade; não sentem o peso da necessidade de dizer, de dar uma forma verbal às suas experiências reais. Para estes, a literatura não passa de um passatempo, uma diversão frugal que exige algum esforço da mente, mas que, no final, não tem valor substantivo para a vida, como o jogo de xadrez. 

    Escrever, como incansavelmente ensinam os grandes mestres, exige não só disciplina, mas coragem também; exige que o escritor não se permita ser dominado pelo arrefecimento do espírito, pela acídia que leva à mediocridade, à superficialidade, à prostituição da consciência, à conformidade com as narrativas ideológicas deste ou daquele grupinho. É curioso notar como as pessoas estão cada vez mais institucionalizadas hoje em dia: para empreender uma investigação, seja no âmbito intelectual, como nas ciências humanas e exatas, seja no âmbito prático, como nas matérias jornalísticas, só tem valor objetivo para o grande público os trabalhos realizados por quem tenha diploma referendado por tal ou qual instituição. O simples esforço individual da inteligência para entender a realidade não vale se não estiver sob as diretrizes de alguma instituição que forneça, mediante o diploma, o crivo através do qual se possa analisar todas as coisas. Pergunta-se: Machado de Assis tinha diploma universitário? William Faulkner gradou-se em qual universidade? Ray Bradbury exibia aos amigos suas fotos usando beca, faixa e capelo? Charles Dickens mantinha uma moldura em cima da lareira ostentando o seu título de Doutor? Lima Barreto fora renomado Bacharel? Quando a sociedade passa a superestimar os títulos, os diplomas, as cartas de comprovação da passagem pelo campus universitário ao invés de reconhecer o real valor do trabalho intelectual genuíno, vocacionado, desinteressado, toma como verdade universal a visão da realidade sepultada pela atmosfera da burocracia institucional. "Afinal, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?". As implicações disto são tenebrosas, não? 

sábado, 23 de janeiro de 2021

Falai palavrões!

 


    É necessário, às vezes, ser rude, no sentido mesmo de ríspido, no entanto, essa necessidade quase cotidiana só existe para um tipo especial de pessoa que, mui desgraçadamente, está cada vez mais abundante no mundo: o idiota. O idiota é aquele sujeito cuja energia máxima da existência é empregada unicamente em vislumbrar o seu próprio umbigo, limpá-lo com aqueles protetores auriculares -- que para ele deveriam ser umbigulares -- embebidos em substância higiênica, lustrá-lo, enfiar-lhe o dedo indicador até que a articulação distal desapareça no tecido adiposo do abdomen. Eliminar as crostas negras de sujeira acumuladas nessa icônica região anatômica é, portanto, a única atividade digna de concentrar toda a atenção verdadeira do idiota contumaz. Nenhum pingo de energia para a prática do amor ao próximo, nenhum interesse em fazer o bem para quem quer que seja, nenhum reflexo de atenção verdadeira para com o outro. Nada. Todo o universo está, para o idiota, circunscrito pelos limites anatômicos do seu fabuloso umbigo. "Oh, Umbigo divino! Oh, Umbigo ditoso! Oh, Umbigo perfeito! Tu és o centro de todo o universo! Para Ti convergem todas as massas, Tu as atrai todas para Si e nem aqueles que cavalgam os raios de luz, a 299.792.458 m/s podem escapar-Te a atração. Tu és incomparável, oh, Umbigo deífico!". O idiota, quando medita sobre os mistérios da vida, tem pensamentos desta natureza. 

    Daí que toda sorte de palavras malcriadas, de vocábulos torpes, imorais, vulgares, diabolicamente articulados em explosões de perdigotos, lhe sejam destinadas. É satisfatório. Se é belo e moral também, não me interessa, só sei, nesse momento, que é satisfatório, sumamente satisfatório. É como ter o vigor físico para dominar, sozinho, uma mangueira de bombeiro cujo hidrante é o seu próprio corpo e a substância que lhe sai, descrevendo esguichos magníficos, ser suficiente para lavar, por inteiro, o Maracanã. Não só, mas a Quinta da Boa Vista também. Sim! Você seria capaz de apagar o incêndio que destruiu o palácio de São Cristóvão com a sua extraordinária mangueira! Claro, isso se tivesses a habilidade de manuseá-la com perícia. As conjecturas sobre a natureza da substância esguichada do seu próprio corpo são desnecessárias, pois já temos aqui um quadro demasiadamente burlesco. Imagine que é água, pronto, assim como a água do aqua lateris Christi, embora, como é sabido, qualquer substância viscosa, quiçá branca-amarelada, composta por enzimas, ácido cítrico e até por bichinhos microscópicos, também seja, dependendo da abundância, eficiente para apagar um incêndio -- a chama de uma vela, pelo menos. Só não tão indecente quanto quando o idiota, insatisfeito em movimentar a falange do seu indicador pelas paredes rugosas da estrutura interna do seu umbigo, o leva à língua, com o propósito de dar uma dimensão também palatável ao seu espetáculo picaresco. 

    Ah, idiota, o que faríamos sem você? Será que o mundo seria melhor se algumas pessoas subitamente decidissem parar de se meter na vida alheia? Será que a vida no planeta ou redondeta Terra -- como preferir -- seria melhor se algumas pessoas decidissem estudar antes de dar soberbamente suas opiniões? Será que haveria algum impacto positivo na vida ordinária do cotidiano se alguns bípedes passassem a usar a dupla de orifícios auriculares com maior frequência do que o grande orifício delimitado pela mucosa de tonalidade avermelhada através da qual recebem o alimento diário -- ou semanal, para as pobres vítimas de algum regime comunista por aí? Será? Eu leio a Bíblia, já a li algumas vezes e sempre, sempre a estou relendo. Há um trecho, uma passagem que, sempre que me flagro pensando na fatalidade dos idiotas, me vem à mente: é aquela na qual Nosso Senhor Jesus Christo, enrolando tiras de cordas nas mãos, desfere lambadas ardidas nos lombos dos vendilhões, dos cambistas que estavam fazendo do ambiente sagrado do templo uma verdadeira feira do rolo. O contexto, isto é, as partes que vêm antes e depois do texto aqui citado por mim, está todo lá, você pode conferir lendo o Evangelho segundo São João, capítulo II, a partir do versículo 13. Imaginar o Verbo Encarnado, furioso, esbravejando com um chicote na mão enquanto, a pontapés, virava mesas e, literalmente, chutava o pau da barraca, é maravilhoso! Os vagabundos dos marreteiros eram mesmo uns completos idiotas, porque profanaram o templo ao invés de prestarem culto ao Senhor. Parvos! 

    De que modo um idiota pode ser curado de sua idiotice? A resposta é muito complexa, porque, embasado nas minhas observações, constatei que quanto mais idiota um sujeito é, menos percebe sua idiotice. Ele, portanto, só pode ser salvo através do brilho de um centelha de inteligência que, por milagre, ainda possa bruxulear dentro de si. Um método eficiente para verificar essa possibilidade é, quando pego no flagrante de alguma de suas idiotices, gritar-se-lhe palavrões, de preferência ao pé do ouvido, de modo a provocar um despertamento no infeliz. Um choque de realidade. Agora, se os palavreados não surtirem efeito, você pode fazer como Nosso Senhor, e sentar-lhe a chibata no lombo. Mas, como aqui não quero insinuar atos de violência [física], limite-se mesmo aos justos impropérios. Talvez haja esperança para o ouvinte. Talvez. 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Resenha do filme A BRUXA -- 2015 --, de Robert Eggers.

 



    Perverter a imagem de Deus, eis a mais ardilosa das artimanhas do diabo. Fazê-Lo parecer cruel em seus julgamentos e injusto em suas sentenças; mostrá-Lo desde um obscuro quadro de indiferença e frieza para com os sofrimentos humanos; transformá-Lo num juiz cruel, pervertendo assim sua intrínseca bondade, eis os intentos do adversário de todas as almas. Deus não é um pai misericordioso e amável, Ele é injusto, porque depositou sobre as costas dos homens um jugo demasiado pesado para ser suportado. Tudo o que os seus filhos podem fazer é levar a vida na incerteza da salvação das suas próprias almas desesperadas. Tal realidade é a tônica da narrativa do diretor americano Robert Eggers no seu filme A Bruxa, "The Witch", estreado em 2015. O longa-metragem traz o subtítulo de "A New England Folktale", "Um Conto Popular da Nova Inglaterra". Da velha Inglaterra vieram os "Pilgrims Fathers" trazendo nos velhos baús de madeira a Geneva Bible de William Whittingham e a esperança de conquistar a Terra Prometida, a "terra que mana leite e mel". 

    O filme de Eggers é um verdadeiro estudo psicológico em moldes estéticos da mentalidade daqueles peregrinos que sobreviveram às primeiras noites da América. Com o entusiasmo para conquistar o new world traziam também uma nova cosmovisão da realidade: a mentalidade protestante dos puritanos. Estes, que se afastaram da Igreja Católica e dos ritos pseudo católicos dos anglicanos, mantinham bem próximo de si a interpretação calvinista do mundo: a doutrina da Predestinação. Deus, em sua infinita bondade, determinou de antemão o destino de todas as almas, de modo que, como sinal de sua salvação eterna, o indivíduo recebe bênçãos em vida; e tais bênçãos vêm, quase sempre, na forma de prosperidade material através da predisposição para o trabalho diligente. As bênçãos e as maldições na vida são, portanto, manifestações claras da Graça de Deus sobre os filhos da salvação ou da danação eternas.     

    Mas e quando o trabalho, mesmo diligente, não dá resultados favoráveis? A história é centrada na narrativa da vida de uma família de puritanos imigrada da Inglaterra para a costa leste da América do Norte. Pai, mãe e filhos vivem agora como membros de uma comunidade puritana na qual os rígidos preceitos morais têm o peso da coerção da lei e a não observância do comportamento irrepreensível perante Deus e os homens é passível de excomunhão. Um dia, porém, o patriarca da família, homem de caráter questionador e rebelde, é levado a julgamento perante os legisladores da moral do povo da pequena comunidade. Por motivos de "consciência" o homem se rebela contra o status quo da administração religiosa da comunidade e, por isso, na companhia de sua família, é convidado a abandonar a vida na vila e a tomar o rumo do mundo desconhecido, para além da proteção dos muros daquela sociedade controlada e controladora. O convite é aceito "com prazer".     

    Encontraram uma região favorável, fronteiriça a uma floresta, e começaram então os esforços para o estabelecimento da nova vida. Nesse campo, a família começa a construir uma pequena fazenda e, em função da diligência no trabalho, alcançam relativa estabilidade. Cultivam uma pequena lavoura de milho, uma horta; criam animais que dão leite e chegam aos estágios finais da construção de um pequeno celeiro. A moradia principal é simples e rústica, mas, em pouco tempo, ingressam numa fase de estabilidade que, a julgar pela dedicação que todos empregam na labuta cotidiana, cada um cumprindo com as suas funções, a renda da fazenda só tende a aumentar, a expandir. No entanto, a fé da família é posta à prova quando os frutos do trabalho não mais são viçosos e a bondade divina parece ter cessado. Aquela que seria a primeira colheita da lavoura de milho e que inauguraria uma nova fase na vida familiar longe da comunidade puritana, revela-se um tremendo fracasso, pois os milhos saem bichados e, para dar força ao momento dramático, o filho mais jovem, um bebê gordinho, desaparece quando estava sob os cuidados da filha mais velha. 


    O patriarca que, na Inglaterra, fora agricultor, não sabe caçar, por isso aqueles que estão sob os seus cuidados dependem exclusivamente dos rendimentos da lavoura para sobreviver. Há uma cena na qual o pai leva o filho homem mais velho para ajudá-lo a preparar armadilhas na floresta, eles esperam capturar algum animal. Pai e filho vão à contragosto da matriarca, pois ela, sob efeito de uma inquietação, de um afligimento, de uma angústia constante, proibira a todos de entrar na floresta. Pois fora para as entranhas daquele ermo que seu bebê fora levado -- não se sabe ao certo por quem ou pelo quê. Nessa cena há um diálogo crucial para o entendimento da mensagem do filme. Enquanto caminham lado a lado, o filho recita máximas decoradas dos preceitos religiosos que aprendera com o pai; o velho indica um princípio puritano, um tema, uma premissa e pede para que o filho o recite. O menino revela diligência não só para o trabalho duro, mas também para a observância dos preceitos da religião que aprendera com os seus pais. As sentenças são reproduzidas exemplarmente de memória pelo filho toda vez que o pai o questiona. Até que, depois de caminharem floresta adentro, ambos chegam na primeira das armadilhas armadas pelo pai na esperança de capturar algum animal pequeno, como um coelho. Mas estava fazia, não pegaram nada. 

    Enquanto constata o fracasso, ajudando o pai a rearmar a engrenagem da arapuca, o menino pára e, parecendo emergir de uma profunda reflexão, começa a tecer perguntas ao pai, questionamentos sobre a realidade da danação eterna apregoados pela religião. O garoto pergunta se será salvo, se Thomasin -- sua irmã mais velha -- será salva, se o bebê, que desaparecera, e todos os outros irmãos terão seus lugares no Paraíso. O pai, puritano exemplar e, exatamente por isso, homem atormentado pela incerteza da salvação da sua própria alma, responde não saber, afirma que ama o filho e que é necessário ter fé em Deus. Uma evasiva. A perspectiva da misericórdia divina é cinza, é tão nublada e incerta quanto a paisagem outonal apresentada no filme. A visão de mundo da família não inclui a possibilidade da redenção e perdão dos pecados senão através de um permanente estado de contrição que, ao invés de conduzir o indivíduo para um estado de alegria, de júbilo em se saber perdoado, o afunda cada vez mais numa depressão. Para eles, é um esforço sobre-humano que, na prática da religião cotidiana, pode chamar a atenção de Deus. 

    As relações familiares subsistem sob uma tensão constante entre a cobrança, a fiscalização da moral alheia, e o esforço permanente para obter o perdão divino. No entanto, nada disso é efetivamente alcançado. Não há como reprimir as paixões da carne, o ímpeto pecaminoso para praticar o mal, nem em si, nem no próximo. Toda a aparente disciplina de uma vida austera é mera hipocrisia. O perdão efetivo só é alcançado mediante o exame da consciência e a confissão, o que exige, para esta, um mediador. No entanto, não há mediadores na cosmovisão religiosa da família vivendo na fronteira da floresta; eles próprios, como indivíduos, são os seus sacerdotes, são os responsáveis pela integral observância de todos os preceitos. Cada um é fiscal de si e do próximo. Entre o casal, há, por parte da mulher, uma cobrança ainda maior, porque, crendo que a prosperidade material é sinal da Graça de Deus, ela se desespera quando percebe que a família não tem mais condições de se manter naquele lugar. A comida está escasseando e, para piorar, coisas muito estranhas acontecem. Uma atmosfera de suspeita cresce em torno de Thomasin, sua família acredita que a garota é responsável pelo desaparecimento do bebê. A hipótese de um urso ou lobo é prontamente descartada, porque não há animais desse porte nas redondezas. 

    Na mentalidade ocidental da primeira metade do século XVII estava presente a compreensão de que haviam aqueles que, afastando-se de Deus, praticavam deliberadamente o mal. Era uma prática consciente, como uma manifestação clara da vontade do indivíduo mal em servi-lo. Tais pessoas entregavam-se ao serviço do maligno, cumpriam os seus desígnios, atendiam ao seu chamado, serviam aos seus propósitos. As cidades, as vilas, os condados, as estruturas urbanas que, naquela época, eram organizadas com as tecnologias disponíveis, com os meios materiais, políticos, culturais, econômicos e religiosos vigentes, eram ameaçadas pelos servos do diabo. A possibilidade de que houvesse alguém à espreita, rogando um sortilégio contra um ente de sua família, era real e combatida com os meios aceitáveis de uma época em que governantes e governados partilhavam do mesmo corpo de princípios e valores morais e religiosos. Isto, num comparativo com a nossa realidade contemporânea, soa estranho, porque não há mais harmonia entre a fé do povo e a fé dos líderes. Basta perceber a complacência em forma de simpatia que os nossos líderes têm pelo aborto, pelo casamento homossexual e por toda sorte de contrariedades à moral do povo. Mutatis mutandis, se houvessem bruxas hoje -- yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay --, elas seriam amplamente defendidas pelos líderes políticos e, qualquer atentado contra as suas práticas religiosas, como o aborto ritualístico, seria penalizado com o rigor da lei. A linguagem favorável às bruxas, portanto, seria a do politicamente correto. 

    No livro A Verdadeira História da Inquisição, o autor, Rino Camilleri, jornalista e cientista político italiano, conta que, durante a Idade Média, muito diferentemente do que a narrativa "moderna" propaga, havia, sim, pessoas, sobretudo mulheres, que praticavam antigas religiões pagãs -- isso num contexto histórico no qual a completa cristianização da Europa ainda não se efetivara --, nas quais o sacrifício de recém-nascidos era parte integrante dos rituais macabros. Camilleri diz ainda que, se não fosse através da intervenção direta dos membros do clero local, como padres, monges e freiras, tais pessoas, sob a acusação do assassinato de bebês, seriam trucidadas, linchadas, condenadas sumariamente pelos aldeões revoltados. Fora, portanto, a intervenção direta da Igreja que, aplicando os princípios do Direito, salvara muitas dessas pagãs de uma condenação sem julgamento, injusta. Robert Eggers, em seu filme, soube retratar com uma quase perfeição a realidade do choque entre cristãos protestantes, que não estavam sob a direção do Direito Canônico da Igreja Católica, e os elementos contrários à sua fé. O grande mérito de Eggers fora o de ter desenvolvido a sua narrativa a partir de um enfoque psicológico. 

    Thomasin, a filha mais velha do casal, sobre quem recaem as acusações de bruxaria, se vê vítima de uma complexa trama na qual a constante pressão psicológica no ambiente familiar, somadas, sim, a acontecimentos estranhos, preparam o caminho para o afastamento definitivo da garota de tudo aquilo que lhe é caro. Cansada da permanente repressão, ela, numa reação desesperada, revela o quão hipócrita seu pai é, e, contra sua mãe, Thomasin vai até às últimas consequências de um confronto aniquilador. O diabo, sob a forma de um bode negro, que as crianças dos contos populares da Nova Inglaterra chamavam de "Black Phillip", obteve sucesso com o seu plano: conseguiu atrair e tomar Thomasin para si através das brechas morais de uma família escrava da hipocrisia e refém dos seus próprios pecados. Black Phillip oferece à garota uma vida futura de luxúria e de prazeres indescritíveis. É irresistível, porque, afinal, o que ela tinha antes? Uma vida miserável na qual o medo constante da condenação eterna era o seu alimento diário e a impossibilidade prática da redenção, da ascese espiritual a torturava permanentemente. A pobre família não conseguia vislumbrar nada que estivesse para além dos seus próprios pecados, confirmando, assim, as palavras de Nietzsche em "Para Além do Bem e do Mal": "Aquele que luta contra monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". A cena final do filme é um coroamento estético deslumbrante. 


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Carpeaux sobre a Bíblia

     



    OTTO MARIA CARPEAUX fora um sábio, um erudito na mais pura acepção do termo. Seu robusto conhecimento da Literatura, com todas as suas implicações na vida do indivíduo humano, está compilado nos calhamaços da sua monumental História da Literatura Ocidental. Esta obra é uma referência permanente, não só para conhecer o desenvolvimento da Literatura na História, para observar as causas do surgimento dos diversos gêneros literários, das diversas escolas e tradições literárias mas, de quebra, conhecer também como um escritor não nativo da língua de Camões aprendeu a dominá-la ao ponto de se expressar perfeitamente no novo idioma. Reproduzo aqui um pequeno trecho no qual Carpeaux fala sobre a Bíblia, sobre a problemática das diversas traduções no contexto da Reforma Protestante. "Deus escreve certo sobre linhas tortas", é o que diz o ditado. A ruptura de diversas nações europeias contra a Igreja Católica fora determinante para as mudanças subsequentes, para as novas modalidades de governo e para as novas expressões culturais -- nem sempre benéficas. Contudo, o acesso ao texto sagrado escrito não em Latim, mas nos idiomas locais, fora determinante para a consolidação desses próprios idiomas. Diz Carpeaux:

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    "'Bíblia' não significa 'livro', mas 'livros'. Com efeito, não se trata de um livro só, ou de dois -- o Velho e o Novo Testamento --, mas de duas coleções de literatura religiosa, histórica e poética, ou antes, de duas literaturas inteiras. O Velho Testamento é tudo o que ficou da literatura do antigo povo judeu, mas bastante para constituir uma literatura. Os grandes símbolos cosmológicos e os trabalhos e viagens pré-históricas dos patriarcas do Gênese, a legislação severa e teocrática dos outros livros do Pentateuco, as histórias de bravura e crueldade, devoção e apostasia de pastores e reis orientais, nos Juízes e Reis, a visão misteriosa da história universal, no Daniel, o idílio pastoral de Rute, a paixão nacional de Ester, o ardor sensual do Cântico dos Cânticos e o pessimismo desesperado de Jó, o ceticismo do Eclesiastes e a sabedoria prática dos Provérbios, e o desespero e júbilo lírico do Saltério, os hinos de Isaías e as lamentações de Jeremias, as reivindicações sociais de Amós e as visões de Ezequiel e dos outros profetas -- nessa 'velha' Bíblia há tudo o que a gente pode sentir e pensar e exprimir. 

    O Novo Testamento também constitui uma literatura independente: não está escrito no grego de Sófocles e Platão, mas na koiné, na 'língua geral' das classes baixas da parte oriental do Império Romano, e é o único grande monumento literário daquele conglomerado de nações e das suas angústias e esperanças: os grandes discursos éticos de jesus no Evangelho segundo São Mateus, as parábolas novelísticas do Evangelho segundo São Lucas, a teologia mística do Evangelho segundo São João, as vicissitudes da primeira história eclesiástica, nos Atos dos Apóstolos, eloquência, sutileza teológica e abundância de coração, nas epístolas de São Paulo, visões monstruosas, ameaças terrificantes e hino interminável do Apocalipse -- os 'livros' compreendem tudo, do começo até o fim do mundo. 

    O conhecimento desse cosmo religioso e poético por meio das traduções abriu às nações europeias mundos históricos e lados da natureza humana dos quais a literatura greco-romana não soubera nada. A transformação de todos os conceitos emocionais e intelectuais que a Europa experimentou pelo conhecimento da Bíblia só pode ser apreciada por meio da história complicada das traduções. 

    A primeira é a tradução alemã de Lutero: o Novo Testamento, de 1522, e o Velho Testamento, de 1534. As traduções que os protestantes alemães hoje usam exibem ainda o nome do reformador nas folhas de rosto; mas diferem essencialmente do original. As sucessivas revisões do texto impuseram-se, não apenas pelos progressos da ciência filológica e exegética, mas em primeira linha pelos progressos da língua; só dificilmente se lê hoje o original. Lutero não criou a língua alemã moderna -- só a usou e aperfeiçoou com mestria incomparável -- nem a moldou definitivamente. Mas encheu-a. A língua alemã, da expressão solene ou erudita até a conversa simplíssima dos camponeses, está cheia de citações e alusões bíblicas, as mais das vezes já não reconhecidas como tais. Um alemão não pode dizer vinte palavras sem empregar uma expressão bíblica, quer dizer, luterana, e isso se aplica também aos católicos, que, durante a unificação linguística do século XVIII, adotaram a língua de Lutero. Nem o racionalismo nem o Classicismo de Weimar foram capazes de eliminar o caráter bíblico da língua alemã; um estudo especializado revelou a existência de inúmeras expressões e metáforas da Bíblia luterana nas poesias e escritos do menos cristão entre os poetas alemães, Goethe; encontram-se metáforas bíblico-luteranas, e isso em número considerável, nas pastorais dos bispos católicos, que adotaram, desse modo, a língua do livro cuja propriedade os seus predecessores puniram pela morte dos heréticos. A unidade real da nação alemã ainda é duvidosa: até onde existe, é obra da Bíblia luterana. 

    O mesmo fenômeno repetiu-se em várias outras nações europeias. A Statenbijbel, projetada pelo sínodo da Igreja calvinista holandesa, em Dordrecht, em 1619, e realizada por uma comissão de seis tradutores até 1637, consolidou definitivamente as diferenças entre a língua holandesa e a língua alemã. A presença de dois flamengos entre aqueles tradutores deu à Statenbijbel um aspecto linguístico mais geral e facilitou, três séculos mais tarde, a unificação linguística dos holandeses protestantes e dos flamengos católicos. Na Escandinávia, a Bíblia quase criou línguas, literaturas e nações. Christiern Pedersen, padre dinamarquês que traduzira a crônica nacional de Saxo Grammaticus, tornou-se, por outra tradução, o reformador da Dinamarca: a Bíblia que se chama, do nome do rei que a autorizou, Kong Christierns Bibel, e que é o primeiro monumento até hoje vivo da literatura dinamarquesa; em Pedersen, encontram-se as últimas lembranças do passado pagão, conservadas nas crônicas de Saxo, com a cristianização enfim completa. Entre os tradutores-reformadores do século XVI, a única personalidade que se pode comparar ao próprio Lutero é o sueco Olaus Petri, chanceler, reformador, historiador, poeta, que deixou a memória do caráter mais poderoso e mais duvidoso da história nacional; em todo o caso, criou aos suecos a língua e a consciência nacional. Com Pedersen e Petri entram na literatura europeia as duas nações que darão Ibsen e Strindberg. A Reforma, que significou retirada da Europa para os alemães, significou europeização para os povos nórdicos. 

    O caso mais importante é a Bíblia inglesa. Mas a história é complicada. O primeiro tradutor é o principal: William Tindale. Da sua tradução do Novo Testamento, em estilo solene e arcaico, que é um equivalente perfeito do Latim da Vulgata, sobrevivem, quase sem alteração, os salmos como parte da liturgia anglicana. Tindale era protestante; mas a Inglaterra seguiu o caminho diferente de uma Reforma parcial, pela mera vontade do rei. Em 1539, o bispo Miles Coverdale deu à nova Igreja Anglicana a Great Bible, da qual no ano seguinte, sob os auspícios do arcebispo Cranmer, foi feita uma revisão: a Cranmer Bible. A reação católica da rainha Maria Tudor interrompeu a evolução, e, nesse tempo, os protestantes ingleses, não satisfeitos com os trabalhos anteriores, criaram a Geneva Bible (1560), obra de William Whittingham; é a Bíblia dos puritanos, a Bíblia em cuja língua Cromwell arengou aos seus soldados, a Bíblia que acompanhou os Pilgrim Fathers para a América. Após a consolidação da Igreja Anglicana pela rainha Elizabeth I, o arcebispo Parker editou, em 1568, a Bishop's Bible; mas esta não satisfez, depois, o rei James I, que dirigiu a Igreja Anglicana definitivamente para a via media, meio termo entre protestantismo e catolicismo. Em 1604, o rei recomendou aos bispos nova tradução, que foi elaborada durante sete anos, por uma comissão de 47 tradutores, entre eles homens tão eruditos e santos como Andrewes. O resultado foi a tradução de 1611, chamada King James' Bible, do nome do monarca, ou Authorized version, porque o seu uso foi 'autorizado'. Que significam essas complicações históricas? 

    Em parte, são consequências da índole bem inglesa daquela Igreja. Não foi criada pela consciência de reformadores eclesiásticos nem pela vontade da nação, e sim por um ato arbitrário do rei Henrique VIII, que pretendeu conservar as instituições católicas e substituir apenas a autoridade papal pela autoridade do monarca. Não era possível, porém, afastar as influências protestantes, e o resultado, após muitas fases dolorosas de transição, foi aquela via media: um 'compromisso' bem inglês. A própria King James's Bible é, aliás, um 'compromisso' entre a Bishop's Bible e o texto de Tindale. A Authorized version é uma obra de arte extraordinária: reúne ao gênio linguístico de Tindale, só comparável ao de Lutero, a serenidade equilibrada dos bispos e eruditos da via media. O estudo da evoluções do texto, de Tindale até 1611, é sobremaneira atraente e esclarecedor quanto ao gênio da língua inglesa. Mas a Authorized version não foi elaborada, afinal, para fins literários; tratava-se da tarefa de tornar aceitável à nação inteira o texto do Verbo divino. Aquelas oscilações, durante quase um século, devem ter outro sentido, mais profundo do que os motivos políticos e filológicos indicam. A verdade é que a Authorized version nunca foi realmente 'autorizada'; venceu pelo uso, o que é também um processo bem inglês, indicando que a obra resolvera satisfatoriamente uma dificuldade que ninguém quisera admitir. A língua inglesa é resultado da fusão de duas nações: dos anglo-saxões, de língua germânica, e dos normandos, de língua francesa. O equilíbrio, alcançado em Chaucer, foi novamente ameaçado pela Renascença, em favor dos elementos latinos. Quer dizer, a europeização da literatura inglesa era capaz de separar, outra vez, a nação em duas classes de línguas sensivelmente diversas. Só a Bíblia, o livro comum de todos, podia restabelecer o equilíbrio. Na língua da Authorized version, escreveu Milton a sua poesia classicista e escreveu Bunyan a sua alegoria popular. A Authorized version terminou, na Inglaterra, a fase da Renascença de importação estrangeira; transformou-se em fundamento linguístico da literatura inglesa moderna". 


sábado, 2 de janeiro de 2021

Vulgaris: Ensaio Sobre a Imagem da Mulher.

 

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    A aristocracia romana, para se referir àquilo que lhe parecia ordinário, numa acepção de baixo, sujo, desprezível, habitualmente fazia uma associação com a plebe, com os desafortunados que não pertenciam, para agradar aos ouvidos marxistas, à classe da nobreza. Para a aristocracia pré-cristã de Roma, o vulgos, a multidão, não detinha os dotes de inteligência e de cultura necessários para comungar, num ritual orgíaco pagão, do cálice do prestígio social da alta classe. Esse estado de "vulgaridade" natural da plebe, se transformou na fonte psicológica que infundiu na linguagem dos povos vassalos de Roma uma multiplicidade de vocábulos para designar aquilo que é trivial, insignificante, fraco de feição, que, sob todos os aspectos, definitivamente não pertence à nobreza. 

    O vulgar, portanto, é, por definição, desprezível. Contudo, os séculos que precederam ao domínio latino na Europa viram surgir novas e estranhas modalidades de pensamento, novas e estranhas perspectivas da realidade; viram a decadência da primazia da objetividade pelo jogo subjetivo das palavras sem referentes na realidade. Dois milênios se passaram desde que o patricius, olhando com despeito a meretrix de "má-fé", aconselhou o seu filho a ter cuidado com o envolvimento com as mulheres do vulgos, e os perfis femininos das redes sociais. Estes exibem, para a confusão do mundo, o orgulho da sua vulgaridade. Não tenho a intenção de forçar uma afetação do crivo moral alheio, só quero registrar minhas observações do comportamento humano. Hoje, as mulheres aparentam se orgulhar da sua vulgaridade, mas, claro, é só aparência, porque, no fundo de suas consciências, o que elas sentem mesmo é o vazio da incerteza e a agitação da dúvida. 

    A queda da percepção da realidade implicada, em primeiro lugar, pela degeneração da linguagem, resultou em consequências terríveis para a vida do indivíduo. Com o edifício dos valores morais da religião reduzido a um simulacro de comportamento politicamente correto regido pelas diretrizes do Estado Moderno através dos seus instrumentos de mídia e de cultura, exemplos de eficiência no controle das massas, o que antes era condenável passou a ser amplamente louvado. Tudo sob a ilusão da luta pela liberdade. Liberdade esta, que, em primeiro lugar, apregoa a autonomia do indivíduo do "jugo" da sua religião, vocifera o imperativo da sua emancipação de toda e qualquer ética que não seja a do Estado. É evidente que esse estado de coisas produz indivíduos depressivos, doentes espiritual e psicologicamente, porque os força a assumir que não passam de meros objetos, números nas planilhas dos agentes sociais. Afinal, para que precisamos das promessas do Céu, da Eternidade, se temos paz, segurança e conforto proporcionados pelo Estado Moderno. Para que a vida eterna se temos convênio médico "gratuito"?  

    Observando os perfis femininos nas redes sociais é notório que um grande número deles é vulgar. Mas, "vulgar" em que sentido, sob qual acepção? Considero absolutamente importante esclarecer esse ponto, porque, como dito, a assimilação da realidade através da linguagem está comprometida com os mandos e desmandos ideológicos, não deste ou daquele "governo" em específico, mas de toda a estrutura do Estado Moderno. "Vulgar", no sentido mesmo de banal, ordinário, descartável, trivial, chulo, baixo, grosseiro, indigno, obsceno. Estes são alguns dos sinônimos do termo que se aplicam perfeitamente às imagens femininas das redes. A tragédia dessa realidade ganha contornos tenebrosos quando percebemos que o que perturba os ouvidos da vítima da acusação não é a palavra em si ou a imagem invocada em sua mente ou o referencial na realidade, mas a negação veemente do fato sob a justificativa de que ele simplesmente não tem importância. 

    Rebaixar o próprio corpo ao status de objeto é afirmar a narrativa do establishment anticristão e desumano. A realidade é muito mais abrangente do que os seus recortes grosseiros feitos pelas "Ciências" universitárias. O mensurável constitui senão uma parcela infinitesimal de tudo o que existe e esta percepção, a da transcendência, está presente na natureza ontológica do indivíduo humano. O homem tem em sua natureza algo que o remete à Eternidade e esse "algo" é a raiz, não só da sua religião, mas como também da ordenação da sua vida em sociedade, dos seus critérios para seguir esta ou aquela política, para se expressar desta ou daquela forma através da sua cultura. A origem da cosmovisão do homem é, portanto, transcendente. 

    De que modo isso implica no comportamento humano no âmbito da vulgaridade exibicionista? Ora, a percepção altamente equivocada de que a vulgaridade é irrelevante é só uma das consequências do relativismo moral apregoado e defendido, a todo custo, pelo Estado Moderno através, principalmente, da linguagem da mídia. Os parâmetros morais do Ocidente respaldados na sua religião caíram no exato momento em que novos parâmetros, numa síntese confusa de Hegel, Kant e Marx, foram estabelecidos. A tecnocracia do Estado Moderno, usando de meios cada vez mais sofisticados, tratou logo de liquidar a cosmovisão transcendente do homem, impondo-lhe que assumisse a realidade tal qual descrita pelo conjunto caricaturesco das "Ciências" existentes. Daí a importância da perda da fé religiosa para o Estado Moderno. 

    Ligeiro corro os olhos pelos perfis das moças na rede social, só me detendo ao encontrar um rosto mais belo ou um conjunto de curvas melhor delineadas, bem proporcionadas, sinal claro de que, como diria minha amiga Inês de Viana do Castelo, se a gaja não é lá essas coisas, pelo menos é boa fotógrafa, sabendo manejar habilmente as ferramentas de edição. Há inúmeras mulheres assim por lá. Depois de tanto ver, começo a sentir uma pontinha de tristeza e, quiçá, de compaixão. O corpo da mulher sempre me pareceu uma coisa sagrada, uma coisa que inspira cuidados especiais, que, mais do que mera admiração estética, inspira admiração e respeito pela possibilidade da vida. Por que se exibir assim? Qual o sentido, o propósito disso? Atrair a atenção dos homens? É provável que isso funcione, mas atrair a atenção para o quê? Será que não há nada na mulher além do seu corpo? É claro que há, mas séculos de manipulação da percepção da realidade pelo sistema do mundo anestesiou os corações e as mentes dos indivíduos. O outro só existe para satisfazer as carências sensoriais, os ímpetos dos sentidos mais baixos da fisiologia humana. Nada de laços de consciência mais profundos no nosso admirável mundo novo

    Contudo, permanece viva nas consciências a imagem da mãe, da doadora da vida, do meio gracioso através do qual tomamos nosso lugar na esfera da existência. E o símbolo máximo da perfeição da maternidade é aquela que é, a um só tempo, mãe e virgem. Esse mistério cristão é fortaleza para as mulheres de todas as épocas e lugares, é a inspiração para a manutenção da virtude. No entanto, as moças encontram na Virgem Maria a representação máxima do objeto síntese do ódio do Mvndo Moderno: a mulher que é mãe e é virgem. Daí a rebelião contra um e outro aspecto da natureza feminina; daí o louvor ao comportamento vulgar, ao ímpeto de revelar aquilo que deveria ser conservado sob um véu. 

* Messalina, 1880, óleo sobre tela de Henrique Bernardelli, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. 

  Alice se despede    Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seu...