Depois de algumas semanas sem experimentar a deliciosa sensação da poeira invadindo-me pelas ventas e me fazendo espirrar com a potência de um puro-sangue lusitano, voltei a visitar o alfarrabista Messias, na Sé. Para quem não é de São Paulo, o Sebo do Messias ostenta o título (marketeiro) do "maior sebo da América Latina". A propaganda, se não expressa toda a verdade, erra por pouco, pois, de fato, a loja de livros velhos é imensa e apresenta uma variedade e abrangência de temas que faz jus à quantidade faraônica de livros. É o paraíso dos bibliófilos! Sou um rato de biblioteca com um faro especializado: o que me atrai são os livros antigos, aqueles que não vêm somente com poeira e marcas do tempo, mas com anotações dos seus antigos donos, com os registros dos seus pensamentos. Com o passar do tempo, passei a notar que as anotações nos livros, feitas em qualquer época, seguem o mesmo padrão: primeiro, os donos têm a preocupação em se fazerem reconhecer como os legítimos senhores do livro, inscrevem seus nomes na contracapa como registro de posse; depois, com o fluir da leitura, vão salpicando as páginas com apontamentos de momento, ideias mais ou menos coerentes com o entendimento da narrativa; por fim, os orgulhosos leitores, numa derradeira e triunfal canetada, deixam registrado para o posteridade as datas do início e do fim da leitura do precioso objeto. São sinais de afeto, mais do que de mera atenção.
Hoje, vagando pelos corredores do Messias, encontrei um desses raros objetos que fazem os olhos brilharem e um sorriso de contentamento perdurar até a volta para casa, ao cair da noite, quando a memória começa a regurgitar os acontecimentos do dia só para fazer despertar o sorriso arrefecido. Tratava-se da oitava edição da novela portuguesa "As Pupillas do Sr. Reitor -- Chronica da Aldeia", de Julio Diniz, publicada em Lisboa no longínquo ano de 1898. Eu não conhecia a obra. E ainda não a conheço, pois não a li, o livro acabou de chegar. Mas, pelo que me revelaram as pesquisas rápidas pelas internets, a novela fez um sucesso considerável na época em que fora publicada, sob o formato dos famosos folhetins, em 1867. E depois, com o advento do cinema, a trama fora filmada em vários momentos durante o transcurso do século XX, até ganhar versões típicas das novelas da tevê. Virou telenovela. No Brasil, pelo menos duas emissoras a transmitiram: o SBT e a Record, sempre com picos de audiência. Ainda sob a autoridade de minha pesquisa rápida, soube que a narrativa se desenvolve em torno do regresso para uma pacata aldeia no interior de Portugal de um jovem que fora estudar medicina no Porto. Sua volta para o ambiente bucólico desperta paixões adormecidas. Lerei o livro procurando descobrir a forma como os ambientes do campo e da cidade foram apresentados, se a narrativa é propensa para um desses mundos. Enfim, é uma novela.
Folha de rosto do livro.
Nesta página, o antigo dono do livro (presumo que seja um adolescente português ou francês que viveu, obviamente, entre o fin de siècle XIX e início do século XX), inscreve o seu nome, René Ehiollien, acompanhado de um desenho e a referência ao mês de fevereiro de 1901. Tudo muito bem acabado a bico de pena.
E aqui ele escreve, como se não tivesse o diário à mão, um fato ordinário do seu dia, mas que teve tamanha importância que o fez registrar no livro que estava lendo: "Quinta-feira, 27 de Outubro de 1910. A Julia foi hoje embora. Almoçamos e jantamos no Lucas!".
E por fim, o senhor do livro deixa para a posteridade as datas do início e do término de sua leitura: "Terminei a leitura deste livro agora, às 11hs mais 20min da noite. Domingo, 4 de Dezembro de 1910." E completa mais uma vez como se seu diário estivesse distante ou, mais do que isso, quisesse fazer de um fato ordinário do seu cotidiano, parte da sua leitura, uma extensão desta: "Eu e Sylvinha fomos, durante o dia, à Comédia Francesa. René... Paris."
Me pareceu que ele fez confusão com os anos de 1910 e 1901: no início, registra "1901" e, em alguns pontos do livro até o final, "1910". Talvez tenha sido uma pequena falta de atenção do nosso nobre leitor de novelas. Que achado!
Nenhum comentário:
Postar um comentário