terça-feira, 26 de maio de 2020

Conto: Ellen.



    Seus seios arfavam num compasso irregular e, da sua fronte parda, o suor escorria abundante até o limiar dos seus lábios onde, num movimento sensual, era acolhido por sua língua e desaparecia na umidade infinita do seu corpo. Sob o sol impiedoso do sertão da Bahia, a jovem Ellen caminhava confiante, quase prazenteira, a subir a ladeira com aquele livro, úmido pelo suor que vertia do seu corpo, numa das mãos. Ao chegar à biblioteca municipal, foi de imediato reconhecida por Diógenes, seu vizinho que também era o responsável pela dispensação dos livros. Depois de preencher a ficha da devolução, Ellen decidiu caminhar por entre as poucas prateleiras que haviam no recinto, porque, localizada entre os rincões mais ermos que os ribeirinhos do São Francisco conheciam, o vilarejo onde Ellen morava não tinha, aos olhos da providência dos recursos, elevação para receber uma biblioteca que fosse disposta com mais de meia dúzia de prateleiras. 

    Enquanto a bela cabocla procurava por uma nova leitura, os olhos de Diógenes, famintos pelas sinuosidades que compunham a silhueta do seu corpo, brilhavam ao contemplá-la. Ellen tinha consciência de estar sendo observada, desejada, desenhada nos pensamentos daquele rapaz fascinado. Ela sorria. A verdade era que aquela mocinha do sertão tinha incrustado na sua personalidade a força de uma inteligência que fora, pouco a pouco, lapidada nos moldes das suas muitas leituras. Ellen era uma das poucas almas daquele sertão que havia, à custa de não muito esforço, porque tinha a mente afiada, dominado a arte de ler. Para ela, seu hábito se revestia dos mistérios do outro mundo; daqueles mesmos mistérios que inflam as velas dos corações ao singrar pelos mares do drama da existência. Sua última leitura, esta que a fez subir a ladeira sorrindo e suando, fora Madame Bovary, de Gustave Flaubert. 

     Ellen saiu da biblioteca carregando um livro, vê-la assim era tão comum quanto observar os sorrisos e as expressões de contentamento que traduziam esperança nos rostos dos habitantes do vilarejo depois que chovia. Os olhos de Diógenes a viram ir embora, eles a acompanharam até que a encruzilhada que põe fim à ladeira a fizesse desaparecer ao dobrar à esquerda. 

    As casas de Diógenes e de Ellen partilhavam o mesmo jardim, ou, numa descrição mais fidedigna à realidade do sertão, o espaço irregular de terra batida onde, entre os cacarejos, berros e mugidos dos animais, ambos brincavam quando crianças. Havia também um celeiro e um poço. Este era partilhado pelas duas famílias das casas vizinhas, aquele foi o local no qual Ellen testemunhou a força da cadência dos movimentos que geram, por milagre, a vida. A bela Ellen e seu amigo Diógenes tinham quase a mesma idade quando, há alguns anos, entre a passagem da infância para a adolescência, o garoto a levou até o celeiro com o pretexto de mostrar-lhe uma coisa curiosa. 

    Depois desse dia, Diógenes nunca mais se veria na presença de Ellen sem timidez ou um mal estar que desperta nele uma estranheza, misto de pavor e fascinação. Mesmo quando ele tem que preencher os papéis com os dados dos livros que Ellen pega na biblioteca, o faz com pressa, afobação e celeridade, mas, quando ela se vai, os olhos do rapaz não resistem a acompanhá-la e assim o fazem até perdê-la para um obstáculo intransponível às suas retinas, como a esquina no fim da ladeira. 

    É claro que a moça ainda conserva na memória o que viu no celeiro naquele longínquo dia da sua infância em que Diógenes a chamou para lá. Ellen se recorda da visão dos cavalos, de sentir a terra tremendo, de ouvir o relinchar dos animais esbaforidos, de sentir o cheiro do celeiro. Diógenes estava ao seu lado, ele dizia que era desse modo que a égua ficava prenha para depois parir quando, de súbito, seu pai entrou no recinto e, aos gritos, os expulsou de lá. Ela aprendeu muito com os livros que leu, mas nunca soube explicar para si mesma o porquê de Diógenes nunca mais, desde aquele dia, agir naturalmente em sua presença; ela lamentou perder sua amizade de uma forma tão inexplicável. 

    Naquela noite, depois de se banhar e se recolher no pequeno quarto, Ellen foi para a janela, onde a lua derramava a sua luz. Na mesinha ao lado de sua cama, jazia, na penumbra, o livro que a moça trouxera consigo da biblioteca, era Madame Bovary. 

  

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