terça-feira, 26 de maio de 2020

Conto: Ovo Fabergé.



    "Obrigada, é lindo, Tomás!", disse Gabriela. Ela era uma adolescente que usava óculos e vestidos que destoavam das calças jeans e dos piercings das colegas e que vivia sempre entre os livros empoeirados da biblioteca. Tomás não sabia discernir o que sentia por ela: não sabia se a amava ou se estava mesmo apaixonado. "É seu, Gabriela, porque a admiro muito". Foi o que ele disse depois de entregar o presente que comprara na véspera. Era o aniversário de Gabriela. Tomás havia comprado um ovo Fabergé salpicado de brilhantes azuis, rosas e violetas. Ele sabia que se tratava de uma réplica, porque pagou uma ninharia por ele no antiquário, além do que, como explicara o excêntrico vendedor, era uma réplica barata. Mas, mesmo assim, tratava-se de uma antiguidade e Tomás sabia que sua amiga, Gabriela, gostava de presentes desse tipo.

    Tomás e Gabriela estavam conversando num dos bancos da praça central do campus da universidade, numa ala batizada pelos alunos de "Calçada Gozosa". A origem desse nome curioso pode ser conhecida através dos sentidos, um, em especial: o olfato. Porque essa parte da praça era arborizada com toda sorte de árvores que exalavam perfumes e canteiros de flores de aromas dos mais variados, os alunos, jovens criativos e complacentes com as insinuações que seus instintos despertavam em si, assim a denominaram. Fazia calor e, estranhamente, ventava. Talvez fosse um prenúncio da chuva torrencial que, a julgar pela constância do vento, cairia mais tarde. Das árvores despregavam-se folhas e flores que iam cair nas redondezas e por cima dos jovens enamorados.

    "Tenho que ir agora, Tomás, a primeira aula do curso livre já vai começar". Gabriela era estudante do curso de Letras e, naquele semestre, entre as opções disponíveis na grade para cursos livres, escolheu as polêmicas e concorridas aulas do professor Carlos: Literatura Erótica. Tomás não conseguia imaginar de onde sua amiga, sempre tão tímida, tirava coragem para participar de coisas assim. "Até mais tarde e obrigada, novamente, pelo presente". Ele também tinha as suas obrigações de estudante, levantou e se pôs a caminhar em direção ao prédio da biblioteca, inebriado pela imagem de Gabriela e pelo cheiro das flores.

    Gabriela estava esperando por Tomás na praça, no mesmo banco. O moço demorou, porque esteve perdido em devaneios na biblioteca. Tomás tinha a grata sorte de compor aquela parcela ínfima dos estudantes que têm quem os banque. Ele morava num apartamento próximo ao campus da universidade que fora alugado por seus pais, tudo o que ele tinha que fazer, como instruiu sua mãe, era mantê-lo limpo, organizado e livre de visitas perniciosas. "Gabriela, quero que venha jantar na minha casa hoje. Vamos?". "Não sei, Tomás, fiquei de escrever um conto para o professor Carlos hoje, tenho que enviá-lo por e-mail". "O quê?!", disse Tomás num sobressalto, "você vai escrever um conto erótico para aquele velho safado, Gabriela?". "Não exatamente. É um modelo, material para estudo; o professor quer saber se consigo manejar os diversos símbolos que compõem a trama. Não é nada demais, Tomás".

    "Então eu quero te ajudar", disse ele. Gabriela sorriu com malícia e dissimulou pensar a respeito: "Pode ser". Agora, ambos se puseram a caminhar pelo campus, atravessaram a praça central como um casal de amantes fugidio. Pareciam caminhar também em pensamentos, tanto que levaram algum tempo para perceber que a tempestade iminente havia chegado. Despertaram com um trovão e puseram-se a correr.

    Apesar de o apartamento de Tomás se localizar do outro lado da avenida que margeia o campus universitário, a chuva inclemente os deixou ensopados até os ossos. Não chovia assim há muitos dias, apesar de estarem em pleno verão. Ambos correram até se abrigar no hall do prédio de apartamentos onde permaneceram, por alguns instantes, observando a tempestade castigar as árvores e os transeuntes que, como eles, tiveram que correr da chuva. Tomás e Gabriela viram, na composição desse quadro de aspecto terrível, que, dos jardins do campus saíam a correr, fustigados pela tempestade implacável, casais de namorados ou amantes fugidios também. A chuva caía sobre tudo e todos.

    "Vamos subir", disse Gabriela, e se pôs na frente. De súbito, um vento impetuoso invadiu o corredor de escadas do apartamento e levantou o vestido da moça. Tudo ficou à vista do impressionado Tomás que não tentou disfarçar o espanto e o contentamento com que recebeu, grato, o presente das forças da natureza. Durou apenas alguns segundos, mas o rapaz pôde contemplar toda a brancura que se revelava desde a panturrilha até os quadris da garota. Ambos estavam molhados, mas, em Gabriela, a água ganhava um sentido a mais; assumia os contornos de uma substância diferente, um misto de um licor do paraíso que se apresenta com aspectos deste e do outro mundo. Olhar as pernas e coxas nuas de Gabriela era como observar os detalhes das pérolas cor de pêssego encontradas no interior das ostras no fundo de algum coral esquecido. Para Tomás, as gotículas de água no corpo molhado de Gabriela eram as desejáveis pérolas que ele ameaçou colher. Enfim, os poucos segundos se passaram pondo termo ao devaneio do rapaz: "Anda logo, Tomás, estou congelando aqui", disse Gabriela.

    Ao entrarem no apartamento, Tomás dirigiu-se de imediato ao banheiro de onde voltou com duas toalhas nas mãos. "Aqui, Gabriela. Você não quer tomar um banho?", disse ele. "Ah, como você é gentil, Tomás". Gabriela, levada pelas circunstâncias adversas ocasionadas pela tempestade, pela adrenalina de estar ali, sozinha, com um garoto num apartamento nos entornos da universidade, pela pressão de estar sendo cobrada a escrever um conto erótico para um professor e, sobretudo, pela sua natureza maliciosa e dissimulada, não se atentou ao fato de que, ali, na casa de Tomás, não havia roupas que ela pudesse usar para se trocar. Esta foi a única situação neste dia incomum que a obliquidade do seu caráter feminino não conseguiu perscrutar. Tomás, depois de usar uma das toalhas para se secar, sentou-se no sofá, nas adjacências da porta do banheiro, e ficou imaginando todas as partes do corpo de Gabriela, as curvas e sinuosidades por onde a água, agora quente e relaxante, tocava.

    Depois do banho, quando se pôs fora da área do chuveiro para se vestir, Gabriela percebeu a situação e sentiu-se estúpida. O que fazer? Ela não poderia simplesmente vestir as suas roupas molhadas. Tomás, que ainda estava sentado no sofá em estado reflexivo, deu um salto quando viu Gabriela, trajando apenas uma toalha de banho, sair do banheiro e caminhar, sorrindo, ao seu encontro. "Você ficou louca?", disse ele. "O que, você queria que eu ficasse nua?", ela respondeu. "Tomás, seu tolinho, eu não tenho roupas secas aqui, portanto, ficarei vestida assim até que as minhas roupas molhadas sequem". Gabriela havia tomado uma resolução, mas o pobre Tomás, contudo, não imaginava a extensão das implicações dessa tal resolução.

    "Ainda está chovendo lá fora", disse ela, "até que minhas roupas sequem, ficarei assim, de toalha. Até lá, vamos fazer o que nos propusemos, ora", e sentou-se ao lado de Tomás. "Anda, onde está o computador? Você disse que me ajudaria com o conto". "Está bem", ele disse, enquanto se levantava para pegar o notebook que estava sobre o criado-mudo, no seu quarto. "Por onde vamos começar? Me fale sobre o que você ouviu na aula do professor Carlos". "Gabriela?", disse Tomás espantado, "o que há com você?". A garota o fitava num estado de semi euforia, no trânsito entre o sorriso, a risada e a gargalhada. Agora, quando se aproximava do limiar entre a risada e a gargalhada, Tomás se levantou: "Desculpe, Gabriela, mas você terá que ir embora agora". A moça parou, de súbito: "Mas por quê?" "Nós ainda nem sequer começamos a escrever o conto, Tomás, você disse que me ajudaria". "Eu não reconheço mais você", disse ele, perturbado.

    "Como assim?", ela disse. Tomás respondeu relatando uma longa história, a história de como eles se conheceram, ainda no último ano do ensino médio e de como a amizade entre os dois cresceu e tomou proporções maduras. Ela o ouviu dizer o quanto ele a admirava pela sua beleza, inteligência e, acima de tudo, pelo comportamento contido com que ela sempre se mostrou para com todos, em especial para com os garotos. Tomás não conseguia imaginar sua amiga, Gabriela, oferecendo-se, insinuando-se para ninguém, nem mesmo para ele. O rapaz a amava, a desejava e sofria por ela na exata medida em que a incompreendia: Gabriela era um mistério inabarcável para Tomás.

    "Gabriela, eu te amo!". Em resposta, a moça se levantou do sofá e, séria, retirou, bruscamente, a toalha de banho com que estava vestida, caminhou, decidida, até Tomás e o beijou longamente. Em seguida, nua, resplandecendo na sala do apartamento do rapaz como um farol a guiar os barcos na tempestade, caminhou até o banheiro onde vestiu as roupas ainda molhadas pela chuva. Gabriela apanhou sua bolsa e, encharcada como entrara saía agora, menos molhada, mas, mais misteriosa. "Não preciso mais da sua ajuda, Tomás, vou escrever o conto e enviá-lo ao professor eu mesma!". Girou a maçaneta da porta, atravessou o umbral e desapareceu na curva do corredor, deixando o pobre Tomás em um estado de dúvida que beirava o desespero.

    A chuva cessou, a noite ganhou densidade e atingiu seu apogeu até ser destronada pelo anúncio da alvorada. Quando finalmente amanheceu, Tomás não podia dizer que dormira, nem sequer que havia descansado, sentia-se mal. Preparou-se para a aula, mas, ao chegar ao campus, seus ânimos não eram melhores do que o de alguém que tivesse tropeçado numa rua qualquer e quebrado as duas pernas. Teria aula de gêneros literários naquela manhã, mas decidiu atrasar-se: ficou por um longo tempo sentado no mesmo banco da praça central do campus, na "Calçada Gozosa", na esperança de que aquela atmosfera de perfumes múltiplos o fizesse se sentir melhor. A verdade é que a tentativa funcionou, não se conhece a extensão dos mistérios da natureza, às vezes, tudo o que o sujeito precisa fazer é sentar-se embaixo de uma árvore e esperar. No caso de Tomás, sua espera durou até o chamado para a próxima aula.

    De volta à sala de aula, Tomás decidiu sentar-se no fundo, onde não estava habituado. Naquele dia, aconteceu uma coisa incomum: o professor anunciou a chegada de uma aluna nova. Lá no fundo da sala, onde jazia Tomás com a metade da esperança de que é necessário para se viver com algum contentamento, a boa nova chegou, não em forma de mensagem pregada, mas na própria encarnação do conteúdo desta. Na sua frente, havia uma mesa desocupada onde sentou-se a aluna nova. Tomás só pôde notar, surpreso, no curioso desenho da sua roupa, na camiseta que a garota vestia estava estampado um magnífico ovo Fabergé, com brilhantes nas cores azul, rosa e violeta. A garota olhou para trás e disse: "Olá, meu nome é Beatriz!". Ele endireitou-se na cadeira, a olhou fixamente nos olhos -- eram olhos azuis -- e disse, sorrindo: "Olá, Beatriz, eu sou o Tomás".

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