terça-feira, 26 de maio de 2020

Resenha do livro "Idade Média: o que não nos ensinaram," da historiadora francesa Régine Pernoud.




    O livro da historiadora francesa, Régine Pernoud, é uma daquelas joias de rara beleza que, pelos caprichos da fortuna, temos o contentamento de encontrar, quando, à beira do desespero, buscamos por livros que apresentam o tema Idade Média sem o viés ideológico tão comum, tão vulgar. É um alívio, na verdade, porque, para o interessado em conhecer sobre o período histórico compreendido entre a queda do Império Romano e a imposição na cultura europeia dos valores do mundo filosófico e político de Grécia e de Roma, a estética clássica, não há muitas obras que fogem à métrica do discurso ideológico e, via de regra, falsificado. Os livros que, para o establishment acadêmico dos bem-falantes, cometem a desfaçatez de falar sobre a Europa cristã medieval estão comprometidos, em maior ou menor grau, com o velho discurso que, invariavelmente, apresenta o período histórico em questão como os tempos áureos da ignorância, do fanatismo religioso e, claro, do preconceito -- modernamente falando -- contra a mulher. A narrativa depreciada sobre a Idade Média é a regra quando se busca por trabalhos sobre o tema.   


    Régine Pernoud foge à regra. Adotando uma linguagem simples, suas explanações tornam-se altamente didáticas, revelando uma importante decisão da autora: o de se dirigir às pessoas simples, escrevendo para aqueles que não sabem, não para os seus pares da academia que, intoxicados pela percepção ideológica e, exatamente por isso, inclinados a modificar a realidade a seu bel-prazer, não a deixariam simplesmente falar, expor os resultados de suas pesquisas sem uma censura, ainda que velada. A verdade é que os elementos que se orgulham de fazer parte da academia, quando se veem questionados acerca de qualquer aspecto da realidade medieval, seja do simples cotidiano do aldeão que durante o dia vende seus produtos na praça central da vila e, à noite, diverte-se na taberna, até os complexos laços pactuais que envolvem as palavras do senhor e do servo, trazem à tona o fato vergonhoso de serem completamente ignorantes a respeito. 


    A autora nos revela que foi para atender ao conselho de seu irmão caçula que ela aceitou o desafio de escrever em uma linguagem simples o que descobrira após árduas pesquisas. Ela diz: "Abandonei a expressão erudita para utilizar a linguagem mais acessível." Esse trunfo nos permitiu, através da leitura de seus livros, o acesso a uma percepção clara, lúcida e coerente sobre esse período da história humana que se estendeu por mil anos. Obscuros, na verdade, são os motivos que levam os acadêmicos e seus ouvintes a fazer vista grossa para a documentação da época que testemunha, com riqueza de detalhes, o quanto a vida no período medieval fora diversa da narrativa construída e difundida na modernidade. A natureza das personalidades humanas por trás das falsificações históricas é, de fato, muito complexa e analisá-la em detalhes é um trabalho árduo que exige tempo e disposição para encontrar a verdade quase que por um esforço arqueológico. Mas, é possível ter uma ideia geral dos movimentos do marketing negativo que consagrou a "idade das trevas." 


    Régine diz que, durante o Renascimento, nos séculos XIV, XV e, principalmente, no século XVI, a Europa sofreu um processo de assimilação da cultura grega e romana que, na prática, fora uma verdadeira imposição estética: a única forma aceitável de expressão humana na cultura -- nas artes em geral --, no direito, civil e canônico -- este com ressalvas -- e na estrutura política da sociedade era o modelo que vigorara nos séculos de Péricles (c. 495-429 a.C.) e de Augusto (c. 63 a.C-14 d.C.) que são considerados, respectivamente, o auge de Grécia e de Roma. A Renascença impôs a imitação dos clássicos. É curioso notar que o período clássico macaqueado pelos renascentistas não viu a consolidação do Cristianismo que seria, à custa do sangue dos mártires, firmado como religião oficial do Império Romano somente no final do século IV. Um dos aspectos cativantes na narrativa da autora é que ela esclarece como, no Renascimento, foi se formando, pouco a pouco, um tipo curioso de antipatia e, não só, de desdém por parte dos adeptos dos modelos clássicos para com as pessoas simples que viviam sob a cosmovisão cristã e que atingiria seu ápice três séculos depois, com os horrores da Revolução Francesa. 


    A verdade se revela claramente, não admitir o seguinte ponto é cair numa armadilha de interpretação que, fatalmente, conduzirá o pesquisador -- ou o leitor com interesse sincero -- por um emaranhado de conceitos absurdamente complexos que o afastará de uma possível percepção objetiva acerca do período histórico em questão: a Idade Média é tão covardemente achincalhada simplesmente porque nessa época o Ocidente respirava o Cristianismo, todas as implicações políticas, culturais e socias ganham uma importância secundária quando vistos a partir deste prisma. A mensagem do Evangelho produziu nessa sociedade um estilo de vida único em toda a História, único, porque autêntico. O senhor e o servo partilhavam do mesmo corpo de valores, dos mesmos critérios morais pelos quais o homem pode ser julgado, em primeiro lugar, pela sua própria consciência. Conflitos houveram, de fato, como a autora, com seu brilhantismo, narra nos trechos em que esclarece a imposição da estética clássica na sociedade ocorrida no fim do período medieval. Contudo, durante todo o transcurso desse milênio, a ordem dos conflitos fora de outra natureza. 


     Longe de ser um embate ideológico com o propósito de desestabilizar essa ou aquela conjuntura política, de modificar esse ou aquele comportamento social, de manobrar as massas para os fins mais baixos imagináveis, de manipular as informações para promover mentiras, os conflitos medievais situavam-se mais próximos das demandas mais urgentes da alma humana. O espírito do homem medieval estava dotado de uma compreensão da realidade que, para o usuário do Iphone ou Android, semianalfabeto das redes sociais, soa menos do que um mistério, porque já não há mais interesse. O homem contemporâneo é um desagregado de si mesmo é, portanto, um antagônico do homem medieval que ele insiste em depreciar sem nem saber o porquê. 


    O livro está recheado de análises didáticas sobre os temas mais importantes. Régine Pernoud cumpriu, com excelência, o desafio de escrever bem para os que não sabem. E é com essa excelência didática que ela dá uma bronca no homenzinho moderno "(...) Tanto quanto o irresponsável, o desmemoriado não é pessoa completa; nem um, nem outro, desfrutam deste pleno exercício de suas faculdades, que é a única coisa que permite ao Homem, sem perigo para ele mesmo e para seus semelhantes, uma verdadeira liberdade." E, com esse mesmo espírito de uma professora severa, porque preocupada em ver o esforço do aluno, ela conclui seu livro: "(...) Não estaria na hora de acabar com esta falta de curiosidade sistemática e admitir que podemos estudar, no campo da ciência humana, sem desprezos nem complexos, os mil anos de nossa História que foram bem mais do que um meio-termo?" 

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