terça-feira, 26 de maio de 2020

Conto: Angústia.




    A moça estava caminhando sozinha pela larga rua que margeava o parque, era Domingo e fazia cinco horas desde que a segunda Missa do dia na paróquia local terminara. O singular processo de digestão já tivera seu efeito, depois do farto almoço dominical. Pelo caminho até o parque, ela encontrou algumas pessoas, mas eram poucas, a garota não sabia descrever, mas tinha uma sensação ruim que não a deixava desde que saíra da igreja pela manhã e fora, pesarosa, almoçar com a família. Mantendo-se à direita na calçada, a jovem chegou à entrada do parque. Faltava pouco menos de duas horas para o poente, mas a brisa do crepúsculo se adiantara, a moça, que agora ocupava um banco à margem do grandioso lago do parque, começava a sentir frio. Mas a sensação que a perturbava era a angústia que sentia desde cedo, ainda na igreja. Era um tipo inominável de premonição que crescia em terror dentro de si na exata medida em que a garota, à beira do desespero, se esforçava para verbalizar para si mesmo o que ela estava sentindo.  


     Ela contemplava o lago e lágrimas escorriam pelo seu rosto. A jovem, então, começou a chorar copiosamente, como se da imensidão do lago emanasse uma atmosfera lúgubre que, com seu torpor, fizesse brotar dos seus olhos lágrimas abundantes. Depois do acesso de choro, a moça lentamente ergueu a cabeça, à sua direita um homem se aproximava, era um velho que usava boina e, debaixo de um de seus braços, carregava um volume semelhante a um livro. Mas, o que primeiro atraiu seus olhos nesse quadro estranho, fora o cão negro que o homem velho tinha consigo preso a uma coleira. O animal era de um aspecto terrível e, por um momento, a moça esqueceu-se de seus pesares para dirigir toda a sua atenção à passagem daquelas estranhas criaturas, que se aproximavam desde as árvores próximas ao cercado do parque.  


    Ao chegar a menos de três passos do banco onde a moça estava sentada, tão perto a ponto de notar o leve inchaço ao redor dos seus olhos, o homem parou, de súbito. Ambos se entreolharam e agora ela pôde notar sua expressão: os olhos do velho eram de uma negridão vazia que, com o lusco-fusco, ganhavam um aspecto ameaçador. A expressão da garota agora era de pura estranheza, de dúvida e de espanto. Contudo, antes que ela pudesse perguntar àquele espectro de homem qual era o seu desejo, seu cão que, até aquele momento estivera quieto ao seu lado, subitamente, como a apreensão que se segue depois de se ouvir um tiro, avançou, com extrema fúria, para cima dela. Sua primeira reação fora de surpresa, depois de incredulidade: ela não podia acreditar que havia um enorme e enfurecido cão com seus dentes afiados cravados em seu antebraço. Sua angústia que, há poucos minutos existira somente no seu espírito, agora perpassava por todo o seu corpo.  


    A moça, agora possessa por um crescente desespero, olhou para o homem velho de pé ao seu lado, na esperança intuitiva de que o sujeito puxasse a coleira do cachorro pondo fim ao seu sofrimento, porque os dentes do animal já haviam rompido o fino tecido que cobria o seu antebraço e, agora, uma pequena manifestação de sangue podia ser vista no local. Mas, estranhamente, o homem mantinha-se imóvel, mesmo quando ela, aos gritos, implorava por sua ajuda. A jovem sentiu ódio, um desejo pungente de matar o homem. Ela duvidou que ele fosse sádico, mas tinha certeza de que era irresponsável.  


    O homem velho a via contorcer-se e gritar em absoluta agonia ali, no banco do parque que havia se transformado numa verdadeira arena onde, num passado longínquo, homens enfrentavam a morte encarnada em feras selvagens. Seu cão mordia a jovem com cada vez mais ferocidade, a cada ataque, ele recuava e, à ameaça da jovem se levantar, a fera investia com novas e mais enérgicas mordidas. Toda a extensão do seu antebraço direito estava mutilada e o sangue escorria com uma abundância preocupante. O cachorro, que tinha todo o pelo de um negro reluzente ganhava, no focinho banhado em sangue, um aspecto demoníaco. A fera mordia e arranhava com fúria, rasgando as roupas da jovem; parte do que ela vestia para proteger seu busto, fora arrancado pelas investidas do animal. Um misto de vergonha, medo, ódio e confusão invadiu o seu espírito e a fez mergulhar, enquanto esperneava, gritava e se esforçava ao máximo para livrar-se dos dentes do animal, num estado de semiconsciência. E o homem velho continuava de pé, resoluto, decidido a não fazer nada para pôr fim ao sofrimento da garota estraçalhada pelo seu cão apoplético. A moça ficava cada vez mais confusa e desorientada, sua noção de tempo e de espaço parecia ter sido alterada. Antes de desmaiar, contudo, ela reuniu suas últimas forças para gritar, uma vez mais para o velho passivo ao seu lado, um derradeiro brado de lucidez: “Desgraçado!”.  


    Anoitecera. Quando despertou, ela descobriu que estava numa sala estranha, fracamente iluminada e que não parecia com nada que lhe fosse familiar. A imensidão do lago projetava-se na sua memória como uma vaga lembrança. Deitada numa cama estreita, sua cabeça girava entorpecida, mas a moça começou a recobrar a memória da véspera quando, para verificar o que fazia seu antebraço doer, descobriu curativos colocados cuidadosamente em ferimentos que cobriam dois terços do seu membro superior. Esses curativos eram as únicas coisas sobre seu corpo. Além da cama em que ficara deitada por tempo desconhecido, havia no recinto diversos quadros nas paredes, uma variedade incrivelmente vasta de pinturas em que eram representadas pessoas em estranhas posições: uma mulher loira e muito bonita estava completamente estendida numa cama feita de nuvens, absolutamente nua, sorrindo para o observador; outra, uma ruiva muito magra, podia ser vista sentada no que parecia ser um banco de piano, vestida apenas com a parte de baixo de um vestido verde muito escuro, estava na posição de amamentar, mas, ao invés de ter um bebê em seu colo, um corvo bicava um de seus seios de onde, para horror do observador, o sangue escorria até tingir de marrom o vestido verde. A moça imaginava que não deveria estar ali há mais de doze horas, desde que fora sequestrada no parque.  


    Como não havia nem sinal de onde suas roupas poderiam estar, sua única opção, se quisesse se ver livre desse estranho cativeiro, foi levantar-se e prosseguir assim mesmo como estava, nua. Enquanto caminhava através do recinto, entre a infinidade de quadros, a jovem percebeu um em especial, no qual um anjo era representado. Não parecia ser um anjo comum, visto que a figura celeste empunhava uma espada e, revestida com uma reluzente armadura tinha, sob seus pés, um dragão subjugado pela sua força. Era um arcanjo. Mas, o que diferenciava esse quadro dos demais na singular galeria, era a luz tosca que provinha da parte de trás da obra de arte, como se na moldura tivera sido instalado uma iluminação especial. Não era isso. A garota descobrira uma passagem secreta, pois o quadro que representava o arcanjo era, na verdade, uma porta.  


     A jovem teve receio de atravessá-lo, porque, pensou, alguém poderia vê-la despida. Mas, sem muito esforço, porque a situação exigia, ela recobrou a consciência de estar em um estado de risco, pois sabia que fora raptada no parque pelo homem misterioso de boina que trouxera consigo o cão que a atacou. A moça, então, abriu lentamente a porta e desapareceu atrás do algoz do dragão.  


     Não havia ninguém no novo recinto, mas, à semelhança do outro, este também estava atulhado de obras de arte nas paredes. A garota teve um tímido sobressalto ao perceber que esta sala possuía mobília e objetos que denunciavam certa normalidade, ainda que, para ela, tudo fosse sofisticado demais e nada familiar. A normalidade era desejável, em vista de toda a confusão que a atormentava, mas esse pequeno alívio durou pouco. Intuitivamente, a moça caminhou com alguma pressa até a janela mais próxima, mas, para isso, teve de atravessar um longo corredor formado pelos cruzamentos entre enormes estantes de madeira preenchidas com uma quantidade imensa de livros. Ela, evidentemente, estava numa biblioteca. Seu coração batia num compasso acelerado, fazendo-a arfar o tórax nu; seus olhos, esgazeados, corriam ligeiros por todos os cantos, denunciando uma estranha mistura de esperança e apreensão; suas narinas abriam e fechavam numa cadência que se comunicava com a ligeireza dos olhos; e seus lábios, roxos, ressecados e trêmulos, conferiam à garota um semblante de puro terror.  


     Poucos segundos separaram a jovem da porta escondida na moldura da pintura do arcanjo até a janela do novo recinto onde, às pressas, arrancou, com certo cuidado, a cortina cor de escarlate para, finalmente, cobrir a sua nudez. Apesar de ter passado várias horas sobre a cama daquele estranho quarto nas adjacências secretas da biblioteca, ela estava exausta, faminta, sedenta e, principalmente, confusa sobre tudo. Contudo, ainda assim teve que experimentar mais esse dissabor: haviam grades nas janelas, não só nesta, mas em todas do lugar. Seu antebraço direito, que fora mutilado pelo cachorro, doía de modo intermitente, o que fazia a jovem morder a mandíbula e franzir a testa de quando em quando, a cada manifestação de dor. Ademais, àquela altura de um transcurso de tempo incerto, seu estômago também começou a se anunciar, isso a fez lembrar do farto almoço em família que tivera na véspera, antes de sair para caminhar no parque. De todas as pequenas memórias e dores miúdas que sentia numa crescente que começava a provocar na sua consciência uma desordem desesperadora, nada a perturbava mais do que a angústia que a fizera sair para caminhar sob o pôr do sol do dia anterior. A vista da janela não foi animadora: antes de tudo, no primeiro plano, haviam as grades que, como se a esperança da jovem fosse tão densa quanto o seu corpo, bloqueavam sua passagem, extinguindo por completo a promessa de uma fuga. De mais a mais, nenhum sinal de ajuda fora avistado, ninguém, nenhum transeunte para quem a moça pudesse pedir ajuda.  


     Envolta na cortina escarlate, tudo o que ela podia ver através das grossas grades da janela era um imenso e magnífico jardim, ornamentado com toda sorte de canteiros floridos dispostos de mil formas diferentes por toda a extensão do horto. Ela não pôde entrever o horizonte, porque o desmedido jardim terminava, abrupto, num extenso muro coberto por Lágrimas-de-Christo mal cuidadas, que contrastavam com o esmero com que o jardim era mantido. Seus olhos não podiam vislumbrar o que estava para além daquele ponto. A bela jovem sentiu um aperto na garganta que se traduzia em uma vontade irresistível de chorar. Então, aproximando o rosto das grades da janela, ela cedeu, chorou muito, tremendo e soluçando. A garota permitiu que mais um pouco das suas forças fosse levadas pela torrente das lágrimas.  


     Nesse estado permaneceu por alguns minutos, ali, envolta na cortina rubra, chorando enquanto contemplava a imensidão do jardim através das grades da janela. O medo dificultava o seu raciocínio, ela não tinha grandes ideias, aliás, nem mesmo demonstrava iniciativa para tomar pequenas decisões, como, por exemplo, procurar um telefone ou simplesmente sair correndo gritando, pedindo por ajuda. Tinha raiva de si, porque, quando tomou a resolução de caminhar até o parque, deixara o celular em casa, pois não queria que a incomodassem, não queria, sequer, que falassem com ela. Mesmo tendo pensamentos vagos e inúteis, a garota se viu ocupada com uma reflexão que não a ajudou, absolutamente, a encontrar luz na escuridão, antes, lhe aumentou a desordem interior, enfraquecendo sua consciência: seu algoz não dissera nada enquanto a via sucumbir pelo cão feroz, nenhuma palavra, nenhum insulto, nenhuma pista verbal que a ajudasse a entender a situação. Nada. E agora ela estava ali, naquela suntuosa biblioteca de uma mansão completamente desconhecida, temendo pela sua vida, com sede e fome; cobrindo o corpo unicamente com o tecido empoeirado de uma cortina e sentindo o latejar intermitente do braço ferido.  


    Subitamente, a jovem ouviu latidos que provinham lá de baixo, do jardim. Era o cão negro que a mordera no antebraço. Um terror arrepiante percorreu todo o seu corpo, fazendo a ferida no membro superior latejar com uma intensidade atroz, de modo que ela experimentou novamente o frescor das mordidas do animal. Não pôde se conter: afastando-se de um salto da janela, a moça pisou na barra da cortina que, aliás, era imensa a ponto de se arrastar, como um véu carmesim atrás dela, quando caminhava. Tropeçou e a queda fora inevitável. Revivendo uma somatória de todas as agonias da véspera, a garota se pôs a correr, atravessou o salão da enorme biblioteca esbarrando nos pequenos móveis pelo caminho e, com a extensão da cortina que chegava a cinco passos atrás de si, levava consigo, arrastados, pequenos objetos e outras miudezas que, na mais completa afobação, ia derrubando na fuga. Poucos segundos a separaram de ouvir os latidos da fera até a imensa porta da biblioteca.  


      Apesar de ter dimensões colossais, a porta era leve. Nela estavam esculpidos floreios de ramos de carvalho sobre os quais, em quantidade abundante, havia corujas. Certamente, a jovem desesperada não percebeu os ornamentos quando, veloz, atravessou o umbral. Do lado de fora, ela se viu num amplo corredor iluminado pela luz natural que entrava através de grandiosas janelas. Esse corredor dava acesso à escadaria da mansão pela qual descia-se da biblioteca para as outras dependências do local. A moça também não notou as pinturas expostas na parede adjacente à escadaria, nem sequer o cupido esculpido em madeira na base do corrimão, ao fim desta. Desceu, majestosa, como uma ninfa da floresta perseguida por um observador fascinado pela sua beleza e mistério. O vento que entrava através das enormes janelas fazia flutuar o véu escarlate.  


     Quando se viu no primeiro piso da casa, os latidos do cão não mais eram ouvidos. Mas, ela estava decidida a escapar desse cativeiro. Correu à procura de uma saída qualquer, uma porta destrancada ou uma janela sem grades, uma via qualquer de acesso ao jardim onde, mesmo com a certeza da presença do cão lá fora e de seus iminentes ataques, a jovem arriscaria uma fuga. Correu aflita até a porta mais próxima, mas só chegou até lá depois de derrubar um magnífico relógio de carrilhão que permanecera, por uma quantidade de tempo desconhecida, junto à parede, ao pé da grande escadaria. Era um modelo antiquíssimo, de pedestal que, a julgar pelos detalhes esculpidos na madeira e os trabalhos em bronze no mostrador, devia ser um relógio de pêndulo holandês Huygens do século XVII. A angústia da moça levou ao chão, com um potente estrondo, aquela maravilha que fora, por centenas de anos, uma síntese deífica de arte e mecânica. Como um peixe que ignora a natureza do meio em que nada durante toda a vida, a moça contornou os destroços do relógio sem atinar para o que fizera.  


    Esta porta estava trancada, mas, estranhamente, como a força de um contraponto, havia uma janela desguarnecida de grades no opulento hall da mansão. A jovem, sem se atentar para os prováveis perigos que a esperavam lá fora, abriu bruscamente a janela. Nenhum sinal visível do perigo. Fez passar primeiro sua perna esquerda, mas, como a janela não era ampla o bastante, não conseguiu encolher os ombros o suficiente para que o tronco do seu corpo passasse em seguida. Adotou outra estratégia: sairia através da janela passando, primeiro, as duas pernas, de uma só vez, como se entrasse num tobogã. Apoiou ambas as mãos na ombreira da pequena abertura e, aplicando força suficiente para se erguer, dobrou os joelhos simultaneamente e inseriu, ao mesmo tempo e de uma só vez, ambas as pernas pela abertura da janela. Conseguiu avançar até a cintura, quando notou um detalhe importante que a deixou, literalmente, numa posição desconfortável. A grossa cortina vermelha que a cobria prendera-se nos adereços de metal que formavam, como praticamente tudo na casa, os ornamentos floreados da estrutura. O enrosco foi definitivo. A garota não conseguia desvencilhar-se dele sem, para isso, retornar com metade do corpo para dentro da mansão. Ela não gastou três segundos no julgamento da situação: sairia assim mesmo, abandonando o véu carmesim. 


       Uma grande porção da cortina escarlate já saíra pela janela, de modo que a moça ganhou um tipo de proteção, como um acolchoado que a impedia de ter contato direto com a aspereza da madeira que revestia o batente da janela ou com os adornos trabalhados em metal. Lentamente e com alguma dificuldade, a garota foi, pouco a pouco, volteando o seu corpo por sobre o tecido vermelho de maneira que agora fora possível avançar para além da cintura. Nesse estágio e em função da dinâmica da rotação, ela ficou apoiada sobre seu ventre no batente da janela e pôde, finalmente, tocar com os pés no chão do lado de fora da mansão. A cortina estava por debaixo do seu corpo, assim, desde os pés até o pescoço que agora ganhava passagem através da abertura, ela estava completamente nua.   


     O quadro era fantástico: o corpo nu emergia através da pequena janela em movimentos circulares, tendo debaixo de si uma grande porção do tecido rubro da cortina que se estendia desde o emaranhado preso aos adereços metálicos, no interior, até o chão, do lado de fora, que se preparava para receber o corpo branco de quem vinha. O quadro ganhava a expressividade mágica que entorpece os sentidos do observador fascinado ao mesmo tempo em que o seduz. A jovem saía de lá, daquela imensidão vermelha como uma ninfa que nasce, delicada, porém poderosa, semelhante à lua; ela provinha do mundo onírico, tão confusa e estranha quanto o quadro fantástico que protagonizava. Quem quer que tenha sido testemunha ocular desse ato de desespero que, pela forma, ganhara contornos deslumbrantes, recebera uma dádiva, um presente imerecido. Ao endireitar-se de pé, depois de sair finalmente da mansão, a moça teve uma vaga consciência do talho regular de uma barra de ferro em sua nuca. Não sentiu dor, nem medo. Desmaiara.  


    -- Qual é o seu nome?  

   -- Vamos, responda! 

   -- Está com fome? 

   -- Veja, eu trouxe comida para você.  

   -- Acorde, menina! 


     O homem velho era paciente. Seus modos deixavam transparecer um cuidado incomum, um misto de preocupação e afeto.  


      -- Estou com fome. Disse a garota, acordando.  

   -- Coma, então, foi eu que preparei.  


    Havia pão fresco com manteiga passado na chapa, alguns fartos pedaços de queijo e suco de laranja. Ele trouxera o café numa grande caneca de vidro transparente em outra bandeja. A garota despertou com uma fome renovada, por isso, de início, não perguntou sobre coisa alguma. Comeu fartamente e, enquanto se alimentava, começou a reparar no ambiente. O velho deixou a comida e saiu. Ela estava numa cama, mas, diferentemente da última em que repousou, esta era maior, mais confortável. A cortina escarlate desaparecera. A moça ainda não estava vestida decentemente, mas as roupas de cama a cobriam. Seu antebraço envolto nos curativos não doía mais, nem sua cabeça que levara o golpe que a pôs para dormir na véspera, mas ela estava muito fraca.  


     O quarto, que era uma suíte, como a jovem descobriria pouco depois, seria simples e dentro dos limites da imaginação da garota, se não fosse por um detalhe: os quadros nas paredes. Eram cerca de meia-dúzia deles. Novamente, mulheres eram representadas em pinturas estranhas. Ao mesmo tempo em que se alimentava, ela observava os quadros percebendo o quanto eram belos e misteriosos. Na base da moldura do primeiro quadro que viu, ela leu um nome que, certamente, pensou, seria o nome do artista que o pintara: Luís Ricardo Falero. Na pintura, ele retratou uma bela ninfa. Inserida num espaço etéreo, a ninfa, que tinha uma expressão de encantamento, elevava a mão direita aos céus num esforço para tocar a lua. A nudez do seu corpo que preenchia toda a porção central da tela evocava, na mente da garota que o observava, uma sensação de mistério e maravilhamento. De todos os quadros expostos nas paredes do quarto, este fora o primeiro que ela viu, porque estava próximo de sua cama, na parede à sua frente, de modo que, enquanto tomava o seu café da manhã, a jovem não tinha outra preocupação senão desvendar a mensagem oculta por trás daquelas silhuetas femininas.  


    Depois de comer, a moça teve impulsos de se levantar. Não pôde de imediato, porque sentiu sua cabeça girar. Sentou-se na cama e assim permaneceu por alguns minutos, pensando se teria de vagar pela mansão vestindo tudo, exceto suas próprias roupas e, principalmente, se conseguiria se libertar de tudo isso. Uma nova pintura, contudo, atraiu sua atenção. Na outra extremidade do quarto, próximo à porta e ao lado de um relógio de pêndulo fixado na parede, havia um quadro fantástico que fez a garota levantar-se da cama e, protegendo sua nudez com o cobertor, caminhar até lá, para observar os detalhes da obra. Uma plêiade de mulheres nuas cavalgava vassouras e bodes em uma viagem através de regiões etéreas sob o luar irradiado através de fendas nas nuvens negras da noite, eram muito bonitas em sua maioria. Um exército de morcegos e outras criaturas sombrias que voavam entre o cortejo das mulheres parecia se esforçar para bloquear a luz da lua que, através das nuvens, no canto superior esquerdo do quadro, lançava sobre as viajantes do além uma projeção de mistério. Abaixo de uma criatura semelhante a um réptil, no canto inferior direito, o nome de Falero estava lá. Era a primeira vez que a moça vira a obra.  


   O restante dos quadros era do mesmo gênero deste. Ninfas da floresta, fadas e bruxas, belíssimas em sua maioria, conferiam ao cômodo uma atmosfera de encantamento irresistível. A moça estava sentada numa cadeira que, com uma pequena mesa de madeira, formava um conjunto aconchegante e algo sofisticado que a jovem, confusa acerca de tudo, parecia gostar cada vez mais. Subitamente, enquanto ela mantinha os olhos fixos no quadro do Sabbath, a porta do quarto se abriu: 


     -- Vista isso. 

    -- Hey, espere! Não! Por favor, espere! 

    -- São suas roupas, menina, vista. 

    -- Espere! Não me deixe aqui, seu cretino!  

    Depois de atirar as roupas da garota para dentro do quarto, o velho saiu e trancou a porta antes que ela pudesse alcançá-lo. A moça, depois de comer, parecia ter chegado a uma importante resolução sobre seu estado. Estava decidida a lutar por sua vida. Assim, depois de vestir finalmente as próprias roupas, ela sondou minuciosamente o quarto, na esperança de encontrar qualquer coisa que a servisse em seus intentos.  


     -- Eu vou matar você, seu maldito!  


    Depois de se alimentar, como se ganhasse forças para prosseguir viva, toda a sua compleição desenvolveu um aspecto de ódio. Ela gritava, esbravejava insultos e, enquanto caminhava destilando ódio pelo quarto, ia, sem nenhum critério, destruindo tudo o que suas mãos pudessem tocar. Tudo. Os quadros que, há alguns instantes, prendiam sua atenção promovendo, através da beleza, alguma ordem interior, agora eram deixados em mil pedaços pelo chão; a cama, cuidadosamente preparada, que a acolhera durante a noite era como que um símbolo do sadismo do velho; os pequenos móveis típicos do ambiente íntimo eram movidos do lugar com brutalidade. Seus cabelos estavam revoltos, seu rosto perdera todo resquício da harmonia jovial. Ela estava suja. Suas narinas abriam e fechavam numa cadência violenta e todo o seu semblante era como um reflexo da sua mixórdia interior. Ela gritava, chorando, culpada por ter perdido o recato do ambiente familiar em que fora criada:  


    -- Desgraçado! 


    Depois de muito gritar e deixar aquela alcova completamente destruída, a moça sentou-se na beira da cama e, comprimindo ambas as mãos contra a boca, chorou aos prantos. Não sabia o porquê, mas se sentia arrependida e culpada. Assim permaneceu até ouvir a maçaneta da porta girar. Ela fizera muito barulho durante o acesso de raiva, tanto que atraiu a atenção do velho. Não havia muito sobre o que pensar, ela tinha que agir rápido. Então, com muita agilidade e cuidado, rapidamente a jovem pegou um generoso pedaço de vidro de um dos objetos estilhaçados no chão e, envolvendo-o num pequeno pedaço que, de um só golpe, cortara do cobertor, o manteve firme na mão direita e se posicionou ao lado da porta. A espera foi curta. A porta se abriu e o velho foi ao chão, de um só golpe no rosto. O sangue era abundante. O corte prometeu deixar, para sempre, uma monstruosa cicatriz.  


     -- Eu vou te matar, seu maldito! Isso é por ter colocado suas mãos imundas em mim! 


    O velho nada dizia, nem sequer rumorejos ou interjeições de dor saiam de sua boca. Mas ele era forte e, depois de alguns segundos recebendo os golpes improvisados, amadores e descontrolados da garota, como se se recuperasse do golpe inicial, começou a revidar. Com uma de suas mãos segurando firmemente o pulso que sustentava a mão armada da jovem e com a outra cravada nos cabelos dela, na porção posterior da sua cabeça, o velho a dominou. Com um esforço enérgico e bem calculado, ele conseguiu se posicionar por cima da garota enfurecida.  


    -- Me solte, seu filho duma puta! 

    -- Eu vou denunciá-lo à polícia!  

     -- Socorro! 

     -- Não! 

     -- Ai! Pare, por favor, está doendo! 

     -- Você está me machucando! 

    -- Ai! 


     -- Largue esse vidro, menina, agora!  

  -- Largue ou eu arranco os seus cabelos! 

  -- Largue! 


    Mesmo mergulhada num pandemônio inimaginável de dor e terror, ela conseguia perceber melhor a voz do velho agora, como se sua concentração fosse direcionada a isso inconscientemente. A voz dele era grave e de uma densidade encorpada que a moça não percebera antes, quando ainda estava na cama, recebendo dessas mesmas mãos que agora a dominavam, o seu café da manhã. Enfim, deixou o vidro envolto no pedaço do tecido do cobertor cair, lentamente, da sua mão direita. Sentiu a intensidade da pressão em seu coro cabeludo diminuir, assim como a dor. Algumas lágrimas começavam a escorrer lateralmente do seu rosto. O velho que a encarava com o rosto ensanguentado subitamente levantou-se e, recolhendo com rapidez o pedaço de vidro, se afastou.   


    -- Quem é você e por que está fazendo isso comigo? 

  -- Eu estava observando você no parque, menina.  

  -- O quê? Por quê? 

  -- Fui incumbido, é minha missão.  

  -- Você é louco! Que lugar é esse? 

  -- Não se preocupe, menina, você não vai sair daqui.  

  -- O quê? Onde eu estou? 

  -- Num lugar seguro.  

  -- Seu velho desgraçado, você não tem o direito de me manter aqui, em cativeiro. Você é um criminoso! Um covarde!  


    O velho, depois de ouvir estas últimas palavras da jovem, afastou-se rapidamente e, levando consigo o pedaço de vidro que a garota usara para feri-lo no rosto, ia passar pela porta quando, de um salto, a garota levantou-se e o deteve. 


    -- Você não vai me impedir, não dessa vez! 


     Outros murros, socos e pontapés foram desferidos por ambos os gladiadores que agora, com renovado esforço, se enfrentavam ali, no limiar da porta do quarto onde a garota passara a noite desde que recebera, na véspera, o golpe na cabeça que a fizera desmaiar. Agora, contudo, ela estava realmente decidida a escapar, a fugir desse lugar no qual tudo o que podia ver, tocar ou sentir por qualquer dos sentidos, era confuso, caótico e perigoso. O velho lutava com um vigor incomum e intimidador, por duas vezes quase a dominou pelos cabelos novamente. E, com o pedaço de vidro que levava, tentou, sem sucesso, cortar-lhe o rosto também. A moça, por sua vez, movida pela intuição ou pelo mais expressivo desespero, acertou, finalmente, um pontapé eficaz entre as pernas do homem que, subjugado pela dor, capitulou, prostrado, no chão. A garota, depois de perceber que vencera o combate, passou pelo seu oponente derrotado com rapidez e, novamente, se viu correndo pela mansão. Agora, porém, estava mais confiante.  


    O quarto onde permanecera por uma noite ficava no fim de um longo corredor através do qual a moça vitoriosa passou, correndo, mas menos tensa do que antes. Não prestou atenção nos vasos com motivos gregos que, postos em fileiras nos dois lados do corredor, perfaziam um caminho triunfal através do qual a jovem atravessava, como uma guerreira amazona, advinda de um combate. O caminho reto era quebrado por uma bifurcação através da qual os olhos do velho combalido, perdidos na extensão do rosto ensanguentado, viram a garota desaparecer.  


    O velho permaneceu deitado no chão por muito tempo, porque sentia as dores resultantes do golpe certeiro que a moça desferira entre as suas pernas e, além disso, sentia também o ardor do corte profundo em seu rosto que, agora, depois que os ânimos do combate esfriaram, progredira para uma dor aguda que reverberava desde o rosto até a cabeça. Ele fora seriamente ferido. A ferida não parava de sangrar e a inevitável fraqueza tomou conta do seu corpo, extinguindo por completo suas forças. A artéria facial transversa, uma das várias bifurcações da artéria carótida externa, fora atingida. Quando o velho expirou, a moça estava longe, ela não pôde testemunhar a completa aniquilação do seu algoz. Corria, finalmente, pela imensidão do jardim enquanto deixava à mostra um misterioso sorriso que parecia ser o reflexo da sua desconfiança em se saber assassina.  


    Antes de alcançar o muro tomado pelas Lágrimas-de-Christo, a garota ouviu latidos. Voltou os olhos para uma região adjacente à cobertura da garagem da enorme casa, lá estava o cão negro, acorrentado, latindo com furor, como se sentisse o espírito do amo esvair-se do corpo naquele momento. Parou, olhou para o seu braço ainda envolto nos curativos, quis matá-lo. Realmente o faria se tivesse às mãos algum instrumento para tal. Mas, desistiu do intento. Os passos apressados deram lugar a uma caminhada serena, ela não pensava mais no velho e, agora, tinha certeza de que o cão nada faria contra ela. E, no transcurso do tempo em que ali esteve, não notou a presença de mais ninguém, nenhum jardineiro, cozinheira ou empregado que tivesse como ofício servir ao velho e a seu cão. Sentiu os múltiplos perfumes dos canteiros de flores, contemplou as árvores frutíferas e floridas, imaginando, intrigada, como uma criatura tão desprezível poderia viver em lugar tão belo.  


    Quando conseguiu pular o muro, descobriu que não estava muito distante do parque, porque a mansão onde permanecera cativa ficava no fim de uma rua obscura, sem saída, travessa da avenida que margeava a imensa área arborizada onde fora atacada pelo cão. Depois de dar poucos passos para longe do muro da mansão, a moça conseguiu divisar o lago do parque e, observando com mais atenção enquanto caminhava, identificou o banco, arena do seu duelo contra a fera. A jovem teve ímpeto de ir até lá, chegou a enviesar os seus passos na direção do local, quando, de súbito, ouviu uma voz familiar chamando pelo seu nome: 


    -- Beatriz! Beatriz! -- dizia a voz, -- Acorde, minha filha! -- era o seu pai. 


      Fora um sonho. Agora, Beatriz tinha que se levantar e ir para a faculdade, era segunda-feira e nesse dia a moça teria prova. Não foi. 


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