Apesar da expectativa que provocava dor de barriga de ansiedade, Inês, consciente de que o voo percorreria um intervalo de tempo de dez horas, caminhava para adormecer profundamente, recostando-se na confortável poltrona da segunda classe. A aeromoça trouxera amendoim, Coca-Cola diet e água com gás. Inês, sem pensar, comeu o amendoim, uma generosa porção de amendoim japonês muito bem embalada numa daquelas cápsulas que só existem nas cozinhas das companhias aéreas e das agências espaciais. Dizem que os astronautas não comem amendoim com casca, porque essa parte do alimento poderia facilmente se desprender enquanto o explorador do espaço levasse a leguminosa até a boca e as partículas, ao serem atraídas para a corrente de ar artificial da nave, poderiam, como num efeito borboleta, desencadear o colapso de toda a estrutura. Se isso acontecesse, na Terra veríamos um tímido clarão do rastro d'um meteorito, qual estrela cadente, mas não seríamos capazes de imaginar que a composição do objeto era, na verdade, uma nave espacial com seus tripulantes que, dentre os quais, pelo menos um carregava amendoim nos intestinos. Inês teve a dor de barriga revigorada.
Despertou e foi ao banheiro do avião. Não houve turbulência. Quando regressou à sua poltrona, a moça aliviada entregou-se novamente ao sono profundo. Sonhou. Inês andava a cavalo num local ermo, fazia um tórrido calor e ela estava nua, o animal era fogoso, mas a moça não sentia medo. Ela não tinha consciência clara de onde estava, em sonho parecia ser no campo, em alguma propriedade rural. Inês passou parte da adolescência na fazenda dos seus avós, no interior do Estado de Mato Grosso. Seu primo a levava para ajudar com as cordas quando tinham que cuidar do acasalamento dos equinos da fazenda. Foi há quatro anos, ela tinha quinze quando viu aquilo pela primeira vez. Sentiu a terra tremer, assustou-se com os primeiros relinchos dos animais, ouviu o macho esbaforir e, das suas ventas dilatadas, viu escorrer o muco em mil perdigotos embalados pelos relinchos. O cheiro do celeiro impregnava-se nela. "Força, Inês!", gritava seu primo, "não deixa ele sair, ainda não acabou". Depois do primeiro jato, era natural que o animal buscasse se recompor, recuperar as forças que lhe foram drenadas, era então que seu primo, com um sorriso de satisfação, como se ele mesmo fosse o agente da fecundação da égua, dizia à assustada prima: "Pode soltar!". Depois, quando sua avó a chamava para o almoço, a menina comia com maior apetite, lambendo os dedos engordurados com o sumo do peru que sua avó cozinhava tão bem. Essas memórias foram conservadas no seu subconsciente e eram elas que davam vida às sensações do seu estranho sonho.
O animal começou um trote tímido mas constante, e Inês, também timidamente, esboçou um sorriso de satisfação. Aquilo era um oceano de sensações. Ela, nua no cimo do cavalo, sentia os pelos macios do animal afagando-a carinhosamente, no ritmo do trote. O vento que movimentava a crina do equino e os cabelos da moça trazia um perfume agridoce que penetrava fundo nas narinas de ambos. O trote evoluiu para o galope. Sua satisfação aumentava, transmutava-se num prazer constante e crescente, ditado pelo ritmo dos cascos do fogoso equino. Subitamente, o animal parou, esbaforindo. Inês apeou e, sem saber como, se viu às margens d'um rio; uma corrente de água cristalina. Foi entrando, deixando as águas tocarem o seu corpo frágil e no viço. Na medida em que as águas subiam, uma coisa estranha acontecia: ao invés de aliviar o calor de Inês, o mergulho no rio o aumentava, fazendo a moça cair num exótico delírio de satisfação tocando os píncaros do prazer no leito do rio. Mergulhou plenamente. Inês sentiu um toque quente e gentil no pescoço. Despertou e viu que a aeromoça acomodava seu travesseiro que ia caindo com os seus movimentos na poltrona. A empregada da companhia aérea tinha um sorriso de cumplicidade circunscrito pelo vermelho do batom.
A jovem mulher percebeu algo molhado em si. Urina não era, Coca-Cola não era. Inês se recusava a acreditar que aquilo acontecera ali, a 35 mil pés acima do Oceano Atlântico. Talvez fosse influência d'alguma força telúrica, d'algum magnetismo atmosférico, daquelas ondas de energia que arrastam os aviões e os navios para baixo, para as fossas abissais. Inês dirigiu um olhar líquido para a aeromoça, como se quisesse confidenciar-lhe algo. Esta, depois de contemplá-la por um breve momento, abaixou-se ao lado de sua poltrona, acariciou gentilmente o seu rosto e, ao pé do seu ouvido, disse, sussurrando: "Eu sei o que aconteceu, meu bem, eu a vi se estrebuchar na poltrona, você estava friccionando as mãos por dentro das calças até isso acontecer. Mas, não se preocupe, acho que ninguém percebeu. Levante-se discretamente e vamos até o banheiro, eu vou ajudar você". Foram. Houve turbulência. O comandante da aeronave deu ordens para que todos, passageiros e tripulantes, colocassem os cintos, pois o avião ingressara num turbilhão de nuvens incomum, criado pela colisão entre duas massas atmosféricas heterogêneas.
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