Por recomendação do professor Rodrigo Gurgel, iniciei a leitura da biografia de Machado de Assis escrita pela Lúcia Miguel Pereira, "Machado de Assis: Estudo crítico e biográfico". Tenho em mãos a 6º edição, editada pelo Senado Federal para a coleção "Edições do Senado Federal"-- Vol. 236. Já li algumas pequenas biografias e ensaios biográficos sobre o bruxo do Cosme Velho. A última, do ensaísta Gilberto de Mello Kujawski, colaborador do Jornal da Tarde e d'O Estado de São Paulo, fora uma grata surpresa, porque no seu livro, "Machado de Assis por dentro" -- editora Migalhas, 2011 --, o autor enfrenta o problema da politização do literato carioca. Senti como se ele fizesse isso como quem suspirasse, aliviado por tirar um engasgo da garganta, por protestar finalmente contra o injusto enviesamento ideológico adversário do nosso maior escritor. A politização dificulta a compreensão, porque a submete a um crivo de análise parcial, incompleto, falho. Mas agora, voltando à Lúcia Miguel Pereira, é fácil perceber o porquê da consagração desta biografia como referência para os estudos da vida e da obra do ilustre escritor carioca: a Lúcia teve acesso às fontes primárias decisivas para o delineamento do perfil do seu biografado, conversou com contemporâneos do escritor -- a primeira edição do seu livro data de 1936 --, mas, acredito, o seu trunfo foram a admiração e o amor sinceros para com o romancista. Antes de empreender seus esforços para escrever sobre o Machado, Lúcia fora uma leitora atenta, admirada e devotada do escritor, o que a levou a escrever não só com lucidez e profundidade, mas com responsabilidade também; com a consciência clara do peso de transmitir, de comunicar as experiências de suas leituras. Lúcia contava trinta e cinco anos quando publicou seu livro.
Na sua biografia sobre Machado de Assis, a Lúcia Miguel Pereira diz que, quando jovem, Machado já demonstrava uma virtude admirável: nutria admiração sincera pelo talento dos seus amigos, jovens escritores que, assim como ele, guardavam a esperança de serem lidos e reconhecidos pelos seus trabalhos. Por volta dos vinte anos, em 1860, Machado, que então vivia com a madrasta, Maria Inês, nas cercanias do Morro do Livramento, no subúrbio da Côrte, depois de abandonar a função de tipógrafo nas oficinas do seu amigo, Paula Brito, por influência de outro amigo, Quintino Bocaiúva -- o ferrenho republicano --, ingressou no Diário do Rio. Essa nova fase da sua vida resultou no amadurecimento do seu estilo literário, porque o jovem Machado, que antes só contribuía com periódicos estritamente literários, agora se via obrigado a lidar com o grande público, a lidar com a política da Côrte, a opinar sobre as questões mais urgentes do seu tempo. Contudo, para além de favorecer o desenvolvimento do seu talento, o novo emprego, claro, possibilitou ao jovem deixar o subúrbio e se transferir para o centro fervilhante da capital do Império. Nesse momento de sua vida, Machado de Assis se viu próximo de novos e promissores talentos como, por exemplo, Cézar Muzzio, Ernesto Cibrão, Sizenando Nabuco e o próprio Quintino Bocaiúva. Manuel Antônio de Almeida, Casimiro de Abreu, Macedo Júnior e seu antigo empregador, Paula Brito, estavam mortos ou morreriam em breve.
As letras nacionais testemunhavam o nascimento de uma nova geração. Nessa nova fase de sua vida, quando, finalmente, parecia alcançar uma melhoria significativa e experimentar um início de reconhecimento, Joaquim Maria revela um aspecto surpreendente de seu caráter: sua imensa generosidade. Ele não inveja os seus pares, antes os estima, os admira e, principalmente, os ajuda também. A pobreza, a mulatice -- que, naquele tempo, tinha um peso real para a superação das classes --, a gagueira, a epilepsia e, em suma, seus padecimentos da vida não foram, jamais, uma justificativa para que nele se desenvolvesse uma personalidade rancorosa, ressentida ou invejosa. Machado de Assis, apesar de ser acreditado ateu por alguns, professava exemplarmente o Mandamento do amor ao próximo. Isto, somado ao seu caráter introvertido e observador, o coroou com o poder de compreensão da condição humana que o tornou digno do título de nosso maior escritor.
Por volta dos quarenta anos, em 1878, Machado de Assis, que sofria desde sempre de epilepsia, começou também a sentir os sintomas de uma afecção intestinal, provocada pelo excesso de trabalho. Decidiu, então, suspender suas colaborações literárias para os jornais nos quais escrevia e, com a licença do seu cargo público na Secretaria da Agricultura, partiu, com sua esposa, Carolina, para Nova Friburgo, na serra fluminense. O casal lá permaneceu por uma estadia de três meses que, com os restabelecimento do doente, se estendeu por mais três. Lúcia Miguel Pereira diz que essa curta fase da vida do escritor fora decisiva para o seu definitivo amadurecimento. Machado de Assis, carioca nato, nunca saíra da cidade do Rio até aquele momento, nunca experimentara a liberdade de se encontrar fora do ambiente urbano, longe dos amigos, dos cafés, dos clubes literários, das ruas empoeiradas por onde circulavam os bondes puxados por burros o onde se ouviam os pregões dos vendedores ambulantes. Esse momento de descanso -- o primeiro de sua vida -- permitiu que o escritor mergulhasse em reflexões novas sobre a vida e, principalmente, sobre a morte. Quando desceu da serra, o escritor estava mudado para sempre, alcançara, finalmente, o domínio pleno da sua linguagem, dos seus meios de expressão. Sua principal obra, Memórias Póstumas de Brás Cubas, reflexo das suas mais profundas meditações, nasceu pouco depois de seu regresso à vida urbana.
A sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras fora realizada no dia 20 de junho de 1897, Machado de Assis, que passou a vida alimentando o sonho de ver as letras nacionais assim congregadas em uma instituição promotora, estava realizado. Contudo, a vida é uma velha avarenta: quando dá uma alegria, cobra logo com usura os juros da dor. A Lúcia diz que, em novembro daquele mesmo ano, as Diretorias-Gerais de Viação e Obras Públicas foram reunidas em uma só. Machado, que sempre fora exemplar servidor público, testemunhou com frieza -- e talvez com tristeza -- o golpe que instaurou a República. No ano do golpe, 1889, fora nomeado pela Princesa Isabel diretor da Diretoria-Geral do Comércio, cargo que mudou de nome com a chegada dos republicanos ao poder. O novo governo, já esbanjando suas convicções positivistas, julgou que o cargo deveria ser exercido por um técnico, por isso, considerou o velho Machado de Assis, adido, isto é, incapaz. Seu amigo, Mário de Alencar, exprimiu bem o espírito da época: "A lei era um embaraço; mas as leis fazem-na os homens para as ocasiões, quase sempre com pretexto de servirem aos outros, e com o fim secreto do proveito próprio. E assim foi que com a lei tiraram-lhe o que a lei lhe garantia!". Mas, o escritor não permaneceu injustiçado por muito tempo. Em 1902, Rodrigues Alves assumiu a presidência da República e, na chefia do Ministério da Viação, estava Lauro Müller. Um dos primeiros atos do novo governo foi chamar o bruxo do Cosme Velho de volta à atividade de diretor-geral de Contabilidade do Ministério da Viação, cargo que exerceria até morrer. Foi um susto pelo qual passou o escritor nessa última fase de sua vida.
Em certo momento da vida, quando o escritor já gozava de alguma fama entre os poucos letrados da Côrte, ele protagonizou uma cena burlesca, mas que revelara muito da sua personalidade: enquanto revisor de provas para um certo amigo editor, Machado de Assis, ao perceber que deixara passar um erro, ajoelhou-se perante o editor, implorando para que a publicação fosse recolhida imediatamente! Ele chegou até mesmo a dizer que estava disposto a tirar do próprio bolso o montante referente às edições já vendidas. O editor ficou sem palavras e, talvez por um breve momento, sem reações também. Pudera. Machado, que sempre fora um tímido de pantufas, estava ali, de joelhos, implorando para ter a chance de corrigir um erro de Português. O editor, tocado pela sincera demonstração de amor do escritor pelo seu ofício, publicou uma errata. Esse episódio ilustra de modo perfeito o quanto Machado de Assis amava o que fazia. Só mesmo um escritor que amasse o seu ofício se colocaria assim, de joelhos, para implorar a oportunidade de se retratar com o leitor por um simples e inocente erro tipográfico -- de "digitação". Essa atitude, em outros escritores, talvez parecesse mera afetação, mas não com o Machado. Sua obra, sobretudo o que ele produziu depois de 1879, depois de Brás Cubas, é um conjunto de provas definitivas que atestam seu talento e amor pelas letras.
Nos capítulos finais, a autora conta, seguindo a previsibilidade do gênero literário das Biografias, a morte do escritor. No entanto, como se trata de Machado de Assis, o episódio de sua morte não poderia acontecer sem a interferência de algum elemento estranho, incomum, algo que fugisse da regra do pranto e da reflexão sobre o termo da vida. Não. Aconteceu que, estando o escritor em agonia, tendo ao seu lado uma verdadeira plêiade de amigos ilustres literatos e também de pessoas comuns, que cuidavam dele com o mesmo carinho com que cuidaram de Carolina, falecida há quatro anos, Machado recebeu uma visita curiosa: a do fundador do Partido Comunista Brasileiro. Sim. Em uma noite qualquer de 1908, um rapaz de dezessete anos que atendia pelo esquisito nome de Astrojildo Pereira, bateu à porta da casa do Cosme Velho e, passando pelos presentes ilustres, entrou no quarto onde Machado de Assis começava a agonizar. Beijou-lhe a mão e o abraçou. Se o escritor, que já começava a sentir a leveza do outro mundo, pudesse se restabelecer naquele mesmo momento e, sentado à escrivaninha, voltar para o seu ofício, poderia, imagino, escrever poemas em sincera homenagem ao moleque todo carinhoso que decidiu fazer-se presente na sua hora derradeira.
As testemunhas do afeto do jovem pelo velho literato foram ninguém menos que Euclides da Cunha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia, Graça Aranha, Coelho Neto e Rodrigo Otávio; além, é claro, das famílias que prestavam auxílio ao moribundo. O moleque Astrojildo, claro, ainda era um adolescente, estava ali como admirador do seu escritor, do seu ídolo. As leituras da obra machadiana poderiam ter despertado o rapaz para um mundo novo, poderiam tê-lo apresentado uma visão mais profunda da condição humana. Não havia nada ali que pudesse dar pistas dos descaminhos da consciência que o rapaz tomaria anos depois quando, em 1922, aos trinta e dois anos, fundara o PCB. É interessante notar como, mesmo aquelas pessoas inteligentes e, aparentemente, enviesadas para um bom caminho, para uma direção na qual as coisas tendem a se mostrar mais nítidas, mais sólidas e presentes, podem tomar rumos inesperados. Por que as pessoas se tornam estúpidas? Por que a inteligência se corrompe? Por que o gênio pode servir ao mal? Essas são indagações que devem ser feitas precisamente para quem, levado pela perda do sentido da vida, como os personagens do Machado, se permitem o mal. Astrojildo, que não estaria ali, no leito de morte do escritor, se não lhe fosse um leitor devotado, fora, com tão pouca idade, impregnado pela frieza do ceticismo e da falta de sentido para a vida presente na obra do Machado. O estilo, irônico e pessimista, deve ter servido de preparo para o materialismo, o cientificismo e o pragmatismo das ideologias que corromperam sua mente.
Mas, em Machado de Assis, os personagens não se entregam ao mal integralmente, entregam-se à dúvida; a uma dúvida permanente sobre o sentido da vida, sobre pelo que vale a pena viver e morrer. Na verdade, porque buscam sempre por uma certeza, ou, pelo menos, porque aparentam buscar por respostas concretas para as angústias da existência, tendem para a única certeza objetiva: a Morte. Daí o pessimismo machadiano. Astrojildo que, antes de se lançar em defesa do Comunismo, fora anarquista, deve ter encontrado na obra do Machado o principal elemento de que precisava para compor a filosofia da sua ação política: a vida não tem sentido. Desse ponto até a completa negação da transcendência na realidade, até à fé cega no Estado e na crença de que um sistema político tecnicista ofereceria a solução para todos os problemas da humanidade fora um pulo. Um pulo de moleque. O que Machado de Assis diria se pudesse antever que aquele rapaz que tão afetuosamente beijava-lhe as mãos se tornaria o fundador, no Brasil, do movimento político mais desumano já registrado na História? O Machado, tão observador, tão criterioso, tão atento aos movimentos das criaturas à sua volta seria capaz de conceber os horrores do Comunismo? Seria capaz de depositar a fé que ele, durante toda a vida, pareceu negar a Deus, num sistema rígido de controle e estímulo do comportamento humano? Não. Machado de Assis compreendeu a angústia da condição humana, experimentou a liberdade criadora e, por isso, não cairia nesse engano. O bruxo do Cosme Velho, apesar de contraditório, antes como indivíduo humano do que como escritor, fora um convicto praticante do maior dos Mandamentos.
Por fim, temos as palavras sinceras do seu maior crítico, Sílvio Romero que, guardadas as devidas proporções, esteve para Machado de Assis o que Robert Hooke esteve para Isaac Newton ou, mais próximo da Arte, o que Antônio Salieri esteve para Wolfgang Amadeus Mozart.
"Tome Machado de Assis um motivo, um assunto entre as lendas eslavas", disse Sílvio Romero que não pode ser acusado de complacência com o autor do Memorial de Ayres, "há de tratá-lo sempre como brasileiro, quero dizer, com aquela maneira de sentir e pensar, aquela visão interna das coisas, aquele tic, aquele sestro especial, se assim devo me expressar, que são o modo de representação espiritual da inteligência brasileira...
"Seus romances, seus contos, suas comédias encerram vários tipos brasileiros, genuinamente brasileiros, e ele não ficou, ao jeito de muitos dos nossos, na decoração exterior do quadro; mais penetrante do que qualquer desses, foi além, e chegou até a criação de verdadeiros tipos sociais e psicológicos, que são nossos, em carne e osso, e essas são as criações fundamentais de uma literatura". Sílvio Romero.
Excelente texto!
ResponderExcluirObrigado, Jessica!
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