quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Carpeaux sobre a Bíblia

     



    OTTO MARIA CARPEAUX fora um sábio, um erudito na mais pura acepção do termo. Seu robusto conhecimento da Literatura, com todas as suas implicações na vida do indivíduo humano, está compilado nos calhamaços da sua monumental História da Literatura Ocidental. Esta obra é uma referência permanente, não só para conhecer o desenvolvimento da Literatura na História, para observar as causas do surgimento dos diversos gêneros literários, das diversas escolas e tradições literárias mas, de quebra, conhecer também como um escritor não nativo da língua de Camões aprendeu a dominá-la ao ponto de se expressar perfeitamente no novo idioma. Reproduzo aqui um pequeno trecho no qual Carpeaux fala sobre a Bíblia, sobre a problemática das diversas traduções no contexto da Reforma Protestante. "Deus escreve certo sobre linhas tortas", é o que diz o ditado. A ruptura de diversas nações europeias contra a Igreja Católica fora determinante para as mudanças subsequentes, para as novas modalidades de governo e para as novas expressões culturais -- nem sempre benéficas. Contudo, o acesso ao texto sagrado escrito não em Latim, mas nos idiomas locais, fora determinante para a consolidação desses próprios idiomas. Diz Carpeaux:

**************

    "'Bíblia' não significa 'livro', mas 'livros'. Com efeito, não se trata de um livro só, ou de dois -- o Velho e o Novo Testamento --, mas de duas coleções de literatura religiosa, histórica e poética, ou antes, de duas literaturas inteiras. O Velho Testamento é tudo o que ficou da literatura do antigo povo judeu, mas bastante para constituir uma literatura. Os grandes símbolos cosmológicos e os trabalhos e viagens pré-históricas dos patriarcas do Gênese, a legislação severa e teocrática dos outros livros do Pentateuco, as histórias de bravura e crueldade, devoção e apostasia de pastores e reis orientais, nos Juízes e Reis, a visão misteriosa da história universal, no Daniel, o idílio pastoral de Rute, a paixão nacional de Ester, o ardor sensual do Cântico dos Cânticos e o pessimismo desesperado de Jó, o ceticismo do Eclesiastes e a sabedoria prática dos Provérbios, e o desespero e júbilo lírico do Saltério, os hinos de Isaías e as lamentações de Jeremias, as reivindicações sociais de Amós e as visões de Ezequiel e dos outros profetas -- nessa 'velha' Bíblia há tudo o que a gente pode sentir e pensar e exprimir. 

    O Novo Testamento também constitui uma literatura independente: não está escrito no grego de Sófocles e Platão, mas na koiné, na 'língua geral' das classes baixas da parte oriental do Império Romano, e é o único grande monumento literário daquele conglomerado de nações e das suas angústias e esperanças: os grandes discursos éticos de jesus no Evangelho segundo São Mateus, as parábolas novelísticas do Evangelho segundo São Lucas, a teologia mística do Evangelho segundo São João, as vicissitudes da primeira história eclesiástica, nos Atos dos Apóstolos, eloquência, sutileza teológica e abundância de coração, nas epístolas de São Paulo, visões monstruosas, ameaças terrificantes e hino interminável do Apocalipse -- os 'livros' compreendem tudo, do começo até o fim do mundo. 

    O conhecimento desse cosmo religioso e poético por meio das traduções abriu às nações europeias mundos históricos e lados da natureza humana dos quais a literatura greco-romana não soubera nada. A transformação de todos os conceitos emocionais e intelectuais que a Europa experimentou pelo conhecimento da Bíblia só pode ser apreciada por meio da história complicada das traduções. 

    A primeira é a tradução alemã de Lutero: o Novo Testamento, de 1522, e o Velho Testamento, de 1534. As traduções que os protestantes alemães hoje usam exibem ainda o nome do reformador nas folhas de rosto; mas diferem essencialmente do original. As sucessivas revisões do texto impuseram-se, não apenas pelos progressos da ciência filológica e exegética, mas em primeira linha pelos progressos da língua; só dificilmente se lê hoje o original. Lutero não criou a língua alemã moderna -- só a usou e aperfeiçoou com mestria incomparável -- nem a moldou definitivamente. Mas encheu-a. A língua alemã, da expressão solene ou erudita até a conversa simplíssima dos camponeses, está cheia de citações e alusões bíblicas, as mais das vezes já não reconhecidas como tais. Um alemão não pode dizer vinte palavras sem empregar uma expressão bíblica, quer dizer, luterana, e isso se aplica também aos católicos, que, durante a unificação linguística do século XVIII, adotaram a língua de Lutero. Nem o racionalismo nem o Classicismo de Weimar foram capazes de eliminar o caráter bíblico da língua alemã; um estudo especializado revelou a existência de inúmeras expressões e metáforas da Bíblia luterana nas poesias e escritos do menos cristão entre os poetas alemães, Goethe; encontram-se metáforas bíblico-luteranas, e isso em número considerável, nas pastorais dos bispos católicos, que adotaram, desse modo, a língua do livro cuja propriedade os seus predecessores puniram pela morte dos heréticos. A unidade real da nação alemã ainda é duvidosa: até onde existe, é obra da Bíblia luterana. 

    O mesmo fenômeno repetiu-se em várias outras nações europeias. A Statenbijbel, projetada pelo sínodo da Igreja calvinista holandesa, em Dordrecht, em 1619, e realizada por uma comissão de seis tradutores até 1637, consolidou definitivamente as diferenças entre a língua holandesa e a língua alemã. A presença de dois flamengos entre aqueles tradutores deu à Statenbijbel um aspecto linguístico mais geral e facilitou, três séculos mais tarde, a unificação linguística dos holandeses protestantes e dos flamengos católicos. Na Escandinávia, a Bíblia quase criou línguas, literaturas e nações. Christiern Pedersen, padre dinamarquês que traduzira a crônica nacional de Saxo Grammaticus, tornou-se, por outra tradução, o reformador da Dinamarca: a Bíblia que se chama, do nome do rei que a autorizou, Kong Christierns Bibel, e que é o primeiro monumento até hoje vivo da literatura dinamarquesa; em Pedersen, encontram-se as últimas lembranças do passado pagão, conservadas nas crônicas de Saxo, com a cristianização enfim completa. Entre os tradutores-reformadores do século XVI, a única personalidade que se pode comparar ao próprio Lutero é o sueco Olaus Petri, chanceler, reformador, historiador, poeta, que deixou a memória do caráter mais poderoso e mais duvidoso da história nacional; em todo o caso, criou aos suecos a língua e a consciência nacional. Com Pedersen e Petri entram na literatura europeia as duas nações que darão Ibsen e Strindberg. A Reforma, que significou retirada da Europa para os alemães, significou europeização para os povos nórdicos. 

    O caso mais importante é a Bíblia inglesa. Mas a história é complicada. O primeiro tradutor é o principal: William Tindale. Da sua tradução do Novo Testamento, em estilo solene e arcaico, que é um equivalente perfeito do Latim da Vulgata, sobrevivem, quase sem alteração, os salmos como parte da liturgia anglicana. Tindale era protestante; mas a Inglaterra seguiu o caminho diferente de uma Reforma parcial, pela mera vontade do rei. Em 1539, o bispo Miles Coverdale deu à nova Igreja Anglicana a Great Bible, da qual no ano seguinte, sob os auspícios do arcebispo Cranmer, foi feita uma revisão: a Cranmer Bible. A reação católica da rainha Maria Tudor interrompeu a evolução, e, nesse tempo, os protestantes ingleses, não satisfeitos com os trabalhos anteriores, criaram a Geneva Bible (1560), obra de William Whittingham; é a Bíblia dos puritanos, a Bíblia em cuja língua Cromwell arengou aos seus soldados, a Bíblia que acompanhou os Pilgrim Fathers para a América. Após a consolidação da Igreja Anglicana pela rainha Elizabeth I, o arcebispo Parker editou, em 1568, a Bishop's Bible; mas esta não satisfez, depois, o rei James I, que dirigiu a Igreja Anglicana definitivamente para a via media, meio termo entre protestantismo e catolicismo. Em 1604, o rei recomendou aos bispos nova tradução, que foi elaborada durante sete anos, por uma comissão de 47 tradutores, entre eles homens tão eruditos e santos como Andrewes. O resultado foi a tradução de 1611, chamada King James' Bible, do nome do monarca, ou Authorized version, porque o seu uso foi 'autorizado'. Que significam essas complicações históricas? 

    Em parte, são consequências da índole bem inglesa daquela Igreja. Não foi criada pela consciência de reformadores eclesiásticos nem pela vontade da nação, e sim por um ato arbitrário do rei Henrique VIII, que pretendeu conservar as instituições católicas e substituir apenas a autoridade papal pela autoridade do monarca. Não era possível, porém, afastar as influências protestantes, e o resultado, após muitas fases dolorosas de transição, foi aquela via media: um 'compromisso' bem inglês. A própria King James's Bible é, aliás, um 'compromisso' entre a Bishop's Bible e o texto de Tindale. A Authorized version é uma obra de arte extraordinária: reúne ao gênio linguístico de Tindale, só comparável ao de Lutero, a serenidade equilibrada dos bispos e eruditos da via media. O estudo da evoluções do texto, de Tindale até 1611, é sobremaneira atraente e esclarecedor quanto ao gênio da língua inglesa. Mas a Authorized version não foi elaborada, afinal, para fins literários; tratava-se da tarefa de tornar aceitável à nação inteira o texto do Verbo divino. Aquelas oscilações, durante quase um século, devem ter outro sentido, mais profundo do que os motivos políticos e filológicos indicam. A verdade é que a Authorized version nunca foi realmente 'autorizada'; venceu pelo uso, o que é também um processo bem inglês, indicando que a obra resolvera satisfatoriamente uma dificuldade que ninguém quisera admitir. A língua inglesa é resultado da fusão de duas nações: dos anglo-saxões, de língua germânica, e dos normandos, de língua francesa. O equilíbrio, alcançado em Chaucer, foi novamente ameaçado pela Renascença, em favor dos elementos latinos. Quer dizer, a europeização da literatura inglesa era capaz de separar, outra vez, a nação em duas classes de línguas sensivelmente diversas. Só a Bíblia, o livro comum de todos, podia restabelecer o equilíbrio. Na língua da Authorized version, escreveu Milton a sua poesia classicista e escreveu Bunyan a sua alegoria popular. A Authorized version terminou, na Inglaterra, a fase da Renascença de importação estrangeira; transformou-se em fundamento linguístico da literatura inglesa moderna". 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

  Alice se despede    Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seu...