Joana, lisboeta, chegara a São Paulo há dois meses, nunca vira a Praça da Sé, estava assustada. Suas amigas, intercambistas de Filosofia na Fefeleche, disseram para que ela tivesse cuidado, pois nas imediações da Catedral assaltantes costumam fazer ronda. Joana era estudante de Letras, formada, mas inconformada. Queria perceber a condição humana para além dos estreitos horizontes ideológicos dos manuais de Literatura em exposição na universidade. Por isso, decidiu acompanhar algumas amigas que vieram de intercâmbio para o Brasil. Escolheu o destino pelo interesse em nossa Literatura somado à conveniência da companhia das amigas. Naquela tórrida manhã de janeiro em que decidiu ir sozinha visitar os sebos nas imediações da Praça da Sé, Joana não podia imaginar o que encontraria. Esperava ver o sorriso erótico da musa Fortuna ao entregar-lhe a coleção completa de Machado de Assis da editora Garnier num daqueles estabelecimentos que, em Portugal, a rapariga chamava de Alfarrabista. No entanto, a sorte galardoou Joana com muito mais do que as descrições machadianas das gentes de cá, porque a moça transcendeu os movimentos imaginativos que a Literatura instiga e vivenciou, em presença, a força da experiência. Sorte! Lá estava o Machado da Garnier em vinte volumes!
Para um estudante da classe universitária brasileira, que vive na ponte campus-pindaíba, o preço da coleção completa era demasiado caro, um abuso, um absurdo, um assalto. Mas, a portuguesa a arrematou sem esforço. Não, houve sim um esforço, uma preocupação: eram vinte livros e, entorpecida pela alegria do achado, Joana não pensou em como transportar os livros até o hotel. Foi então que, na entrada do Alfarrabista, um rapaz se ofereceu para ajudar. Porque esse rapaz tinha num dos bolsos do bermudão uma Playboy enrolada, como um pergaminho, e, no outro, uma revista com o nome de "Conhecimento Prático", com o subtítulo de "Literatura", não é possível dizer com precisão o real motivo que o levou a acudir Joana com os livros. Por conseguinte, a quantidade dos motivos do rapaz também é uma incógnita. Porque Joana, que era loura bronzeada, via o mundo através dos seus olhos verdes-mel-com-limão e, naquela manhã de mormaço, trajava um vestido leve, tão leve que o vento podia, com soberba, esculpir as silhuetas do seu corpo luso, podemos inferir que o que levou o rapaz a oferecer seus braços para carregar os livros de Joana fora a somatória daqueles dois elementos presentes materialmente nos seus bolsos. juntos, caminharam até um ponto de táxi próximo, onde a moça pretendia pagar uma corrida de volta para o hotel. O rapaz, que trouxera os livros nos ombros, dois pacotes de dez volumes em cada lado, os baixou ao chão, à roda dos seus pés, onde permaneceram por um tempo. Não havia táxi. Esperaram.
O rapaz a olhava, desconfiado e preocupado. Olhava também para os livros abaixo. Joana, distraída, percebeu os temas das revistas que o rapaz trazia nos bolsos e corou. Subitamente, o rapaz recolocou os livros sobre os seus ombros e disparou a correr, deixando cair da coleção em vinte volumes das obras completas de Machado de Assis apenas um livro que ficou de consolação para Joana que, depois do susto, deu uns passos até onde estava o volume perdido e o recolheu para si. Era o Dom Casmurro que caíra. No entanto, no ímpeto da fuga o ladrão deixou para trás uma outra coisa, mas esta lhe pertencia. Era a revista Playboy. Como fazia calor e o táxi não vinha, Joana foi se sentar num banco próximo, sob a sombra de uma árvore frondosa. Ela sorria como se não se importasse com o furto dos seus livros, parecia mesmo que não fora vítima de um furto, mas a ganhadora de um presente. No dia seguinte, o rapaz vendeu os livros para os seus colegas da faculdade.
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