domingo, 31 de janeiro de 2021

Sob a máscara -- Crônica.

 

    
    Cheguei à estação, comprei o bilhete, venci a catraca, subi e desci dois lances de escadas e tomei o meu lugar na plataforma. Não houve demora. Num movimento rápido de cabeça, vejo chegar o comboio vermelho da CPTM. Só não entrei rapidamente, como faria por instinto, porque cedi espaço a uma senhora que se avizinhou de mim no momento exato em que o trem abria suas portas. "Opá!, pode passar, senhora!". Como fosse uma tarde de domingo, não houve concorrência para tomar os assentos. Sentei-me desconfortavelmente num daqueles bancos ordinários da Companhia Paulista, mas, repare, não digo isso pelo puro prazer da queixa, como as pessoas fazem comumente, é que tenho proporções físicas incomuns -- se minha patela falasse, não haveria dicionarista capaz de catalogar-lhe os impropérios. Depois de desviar a mente dessa pequena injustiça dominical, olhei através da janela (permanentemente hermética) e passei a contemplar o pôr-do-sol. Seguia do subúrbio para o centro, nesse domingo eu iria comungar na

    Passaram-se duas estações até que uma moça bonita veio sentar-se ao meu lado: tinha olhos verdes-mel-com-limão, cabelos castanho-claros e um longo pescoço; usava uma camisa social e uma calça preta de tecido leve. Estava, portanto, decentemente vestida para o meu crivo de modéstia, mais hesitante do que exigente. Talvez por ser dia santo e eu estar a caminho de cumprir o preceito, tentei ignorá-la instintivamente, como se tivesse receio de ter de acrescentar mais uma violação ao IX Mandamento. Distraí-me com as publicações da minha rede social, especialmente com uma que ironizava a implicância que algumas pessoas fazem àquelas que vivem com a cara pregada na tela do celular: uma foto tirada do interior de um bonde na São Paulo dos anos 1920 mostrava todos os passageiros com a cara pregada no... jornal! A diferença está no fato de que os celulares são mais práticos, porque são compactos, não preenchem todo o espaço à frente do leitor como as imensas folhas brancas dos jornais de outrora que, além de incomodarem pelo tamanho, irritavam também pelo farfalhar das páginas quando viradas. Pois bem, a moça ao meu lado não estava olhando para o celular, ela tinha mais interesse no pôr-do-sol através da minha janela. 

    No ônibus, no trem ou no metrô é mais fácil observar com naturalidade as moças que estão ligeiramente distantes porque, se os olhares se entrecruzarem, basta um desvio rápido para um ponto qualquer, menos interessante e perigoso. E quando, por fatalidade, acontece um encontro de olhares, um estranho e visceral reflexo de afastamento é desencadeado, como quando o sujeito aproxima o dedo da chama de uma vela ou quando, por puro divertimento, acende um palito de fósforo e espera que as chamas consumam toda a extensão da pequena peça de madeira, até fazer cócegas nos dedos. Dor e constrangimento. Penso que se um estrangeiro, olheiro de alguma agência de moda, viesse à Pindorama com o propósito de aliciar as beldades do seu gosto, ele não teria grande dificuldade em encontrá-las: bastaria se locomover de condução. Numa simples e rápida viagem até o centro da cidade, o passageiro tem uma mostra de praticamente todos os tipos e biótipos característicos da sociedade. Eu tinha certeza de que a moça ao meu lado era uma dessas beldades, mas eu não me atreveria a olhá-la mais, era impossível. 

    Seguimos, então, sentados lado a lado, em nossa peregrinação do subúrbio para o centro. Os passageiros que nos faziam companhia estavam todos perscrutando as telas dos seus celulares, exceto a senhora que recebera minha gentileza ao embarcar, a idosa mantinha os olhos em qualquer ponto vago do piso do trem à sua volta, ou em qualquer movimento interessante que surgia através da janela. Pude observar que trazia um rosário em torno do pulso, talvez estivesse a caminho da missa também. Antes de chegarmos à estação Barra Funda, que, com o perdão do trocadilho tão fácil, deixa de ser uma barafunda aos domingos, ouço um abafado "moço, por favor, que horas são?" em voz de mulher. Era ela, a donzela ao meu lado desejava saber a quantas andava o deus Hélio através do seu percurso pela abóbada celeste. Ele ia adiantado, pois já era quase noite. Sua pergunta me causou estranheza, ela quebrou a atmosfera de silêncio do ambiente, eu esperava ver o seu rosto, mas não ouvir a sua voz. "Quinze para as sete", respondi sorrindo. A moça não carregava um celular. Tão estranho quanto ouvir sua pergunta e me ver, assim, transformado num participante indireto das suas cogitações, foi perceber que a moça não pôde ver meu sorriso quando respondi. De alguma forma imprecisa, isso me perturbou. Três minutos depois, chegávamos à estação Barra Funda. "(...) Ao desembarcar, cuidado com o vão entre o trem e a plataforma". Levantamos, demos alguns passos; abriu-se a porta, desembarcamos. Ela ia à minha frente. Antes de subirmos as escadas, porém, eu parei, tive um pensamento súbito, do tipo mesmo que faz um homem parar, estancar: "Ela não me viu sorrir", pensei, em devaneio, "mas... também não a vi sorrir, não sei... talvez ela tenha sorrido quando respondi". 

    Acho que permaneci nesse estado de devaneio por um longo tempo, porque, próximo a mim, encostada na amurada da estação, aquela senhora que se beneficiara de minha gentileza quando de seu embarque, há meia hora atrás, me olhava com curiosidade e algo mais. Notei que a região em torno dos seus olhos franzia-se ligeiramente, assim como sua testa; e suas orelhas faziam um movimento engraçado, assim como seu abdomen. A velha não estava rindo, mas gargalhando de mim, divertindo-se soberbamente com a minha situação. Dei de ombros. Não tinha como saber com certeza, todos nós usávamos máscaras. 

Um comentário:

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