Perverter a imagem de Deus, eis a mais ardilosa das artimanhas do diabo. Fazê-Lo parecer cruel em seus julgamentos e injusto em suas sentenças; mostrá-Lo desde um obscuro quadro de indiferença e frieza para com os sofrimentos humanos; transformá-Lo num juiz cruel, pervertendo assim sua intrínseca bondade, eis os intentos do adversário de todas as almas. Deus não é um pai misericordioso e amável, Ele é injusto, porque depositou sobre as costas dos homens um jugo demasiado pesado para ser suportado. Tudo o que os seus filhos podem fazer é levar a vida na incerteza da salvação das suas próprias almas desesperadas. Tal realidade é a tônica da narrativa do diretor americano Robert Eggers no seu filme A Bruxa, "The Witch", estreado em 2015. O longa-metragem traz o subtítulo de "A New England Folktale", "Um Conto Popular da Nova Inglaterra". Da velha Inglaterra vieram os "Pilgrims Fathers" trazendo nos velhos baús de madeira a Geneva Bible de William Whittingham e a esperança de conquistar a Terra Prometida, a "terra que mana leite e mel".
O filme de Eggers é um verdadeiro estudo psicológico em moldes estéticos da mentalidade daqueles peregrinos que sobreviveram às primeiras noites da América. Com o entusiasmo para conquistar o new world traziam também uma nova cosmovisão da realidade: a mentalidade protestante dos puritanos. Estes, que se afastaram da Igreja Católica e dos ritos pseudo católicos dos anglicanos, mantinham bem próximo de si a interpretação calvinista do mundo: a doutrina da Predestinação. Deus, em sua infinita bondade, determinou de antemão o destino de todas as almas, de modo que, como sinal de sua salvação eterna, o indivíduo recebe bênçãos em vida; e tais bênçãos vêm, quase sempre, na forma de prosperidade material através da predisposição para o trabalho diligente. As bênçãos e as maldições na vida são, portanto, manifestações claras da Graça de Deus sobre os filhos da salvação ou da danação eternas.
Mas e quando o trabalho, mesmo diligente, não dá resultados favoráveis? A história é centrada na narrativa da vida de uma família de puritanos imigrada da Inglaterra para a costa leste da América do Norte. Pai, mãe e filhos vivem agora como membros de uma comunidade puritana na qual os rígidos preceitos morais têm o peso da coerção da lei e a não observância do comportamento irrepreensível perante Deus e os homens é passível de excomunhão. Um dia, porém, o patriarca da família, homem de caráter questionador e rebelde, é levado a julgamento perante os legisladores da moral do povo da pequena comunidade. Por motivos de "consciência" o homem se rebela contra o status quo da administração religiosa da comunidade e, por isso, na companhia de sua família, é convidado a abandonar a vida na vila e a tomar o rumo do mundo desconhecido, para além da proteção dos muros daquela sociedade controlada e controladora. O convite é aceito "com prazer".
Encontraram uma região favorável, fronteiriça a uma floresta, e começaram então os esforços para o estabelecimento da nova vida. Nesse campo, a família começa a construir uma pequena fazenda e, em função da diligência no trabalho, alcançam relativa estabilidade. Cultivam uma pequena lavoura de milho, uma horta; criam animais que dão leite e chegam aos estágios finais da construção de um pequeno celeiro. A moradia principal é simples e rústica, mas, em pouco tempo, ingressam numa fase de estabilidade que, a julgar pela dedicação que todos empregam na labuta cotidiana, cada um cumprindo com as suas funções, a renda da fazenda só tende a aumentar, a expandir. No entanto, a fé da família é posta à prova quando os frutos do trabalho não mais são viçosos e a bondade divina parece ter cessado. Aquela que seria a primeira colheita da lavoura de milho e que inauguraria uma nova fase na vida familiar longe da comunidade puritana, revela-se um tremendo fracasso, pois os milhos saem bichados e, para dar força ao momento dramático, o filho mais jovem, um bebê gordinho, desaparece quando estava sob os cuidados da filha mais velha.
O patriarca que, na Inglaterra, fora agricultor, não sabe caçar, por isso aqueles que estão sob os seus cuidados dependem exclusivamente dos rendimentos da lavoura para sobreviver. Há uma cena na qual o pai leva o filho homem mais velho para ajudá-lo a preparar armadilhas na floresta, eles esperam capturar algum animal. Pai e filho vão à contragosto da matriarca, pois ela, sob efeito de uma inquietação, de um afligimento, de uma angústia constante, proibira a todos de entrar na floresta. Pois fora para as entranhas daquele ermo que seu bebê fora levado -- não se sabe ao certo por quem ou pelo quê. Nessa cena há um diálogo crucial para o entendimento da mensagem do filme. Enquanto caminham lado a lado, o filho recita máximas decoradas dos preceitos religiosos que aprendera com o pai; o velho indica um princípio puritano, um tema, uma premissa e pede para que o filho o recite. O menino revela diligência não só para o trabalho duro, mas também para a observância dos preceitos da religião que aprendera com os seus pais. As sentenças são reproduzidas exemplarmente de memória pelo filho toda vez que o pai o questiona. Até que, depois de caminharem floresta adentro, ambos chegam na primeira das armadilhas armadas pelo pai na esperança de capturar algum animal pequeno, como um coelho. Mas estava fazia, não pegaram nada.
Enquanto constata o fracasso, ajudando o pai a rearmar a engrenagem da arapuca, o menino pára e, parecendo emergir de uma profunda reflexão, começa a tecer perguntas ao pai, questionamentos sobre a realidade da danação eterna apregoados pela religião. O garoto pergunta se será salvo, se Thomasin -- sua irmã mais velha -- será salva, se o bebê, que desaparecera, e todos os outros irmãos terão seus lugares no Paraíso. O pai, puritano exemplar e, exatamente por isso, homem atormentado pela incerteza da salvação da sua própria alma, responde não saber, afirma que ama o filho e que é necessário ter fé em Deus. Uma evasiva. A perspectiva da misericórdia divina é cinza, é tão nublada e incerta quanto a paisagem outonal apresentada no filme. A visão de mundo da família não inclui a possibilidade da redenção e perdão dos pecados senão através de um permanente estado de contrição que, ao invés de conduzir o indivíduo para um estado de alegria, de júbilo em se saber perdoado, o afunda cada vez mais numa depressão. Para eles, é um esforço sobre-humano que, na prática da religião cotidiana, pode chamar a atenção de Deus.
As relações familiares subsistem sob uma tensão constante entre a cobrança, a fiscalização da moral alheia, e o esforço permanente para obter o perdão divino. No entanto, nada disso é efetivamente alcançado. Não há como reprimir as paixões da carne, o ímpeto pecaminoso para praticar o mal, nem em si, nem no próximo. Toda a aparente disciplina de uma vida austera é mera hipocrisia. O perdão efetivo só é alcançado mediante o exame da consciência e a confissão, o que exige, para esta, um mediador. No entanto, não há mediadores na cosmovisão religiosa da família vivendo na fronteira da floresta; eles próprios, como indivíduos, são os seus sacerdotes, são os responsáveis pela integral observância de todos os preceitos. Cada um é fiscal de si e do próximo. Entre o casal, há, por parte da mulher, uma cobrança ainda maior, porque, crendo que a prosperidade material é sinal da Graça de Deus, ela se desespera quando percebe que a família não tem mais condições de se manter naquele lugar. A comida está escasseando e, para piorar, coisas muito estranhas acontecem. Uma atmosfera de suspeita cresce em torno de Thomasin, sua família acredita que a garota é responsável pelo desaparecimento do bebê. A hipótese de um urso ou lobo é prontamente descartada, porque não há animais desse porte nas redondezas.
Na mentalidade ocidental da primeira metade do século XVII estava presente a compreensão de que haviam aqueles que, afastando-se de Deus, praticavam deliberadamente o mal. Era uma prática consciente, como uma manifestação clara da vontade do indivíduo mal em servi-lo. Tais pessoas entregavam-se ao serviço do maligno, cumpriam os seus desígnios, atendiam ao seu chamado, serviam aos seus propósitos. As cidades, as vilas, os condados, as estruturas urbanas que, naquela época, eram organizadas com as tecnologias disponíveis, com os meios materiais, políticos, culturais, econômicos e religiosos vigentes, eram ameaçadas pelos servos do diabo. A possibilidade de que houvesse alguém à espreita, rogando um sortilégio contra um ente de sua família, era real e combatida com os meios aceitáveis de uma época em que governantes e governados partilhavam do mesmo corpo de princípios e valores morais e religiosos. Isto, num comparativo com a nossa realidade contemporânea, soa estranho, porque não há mais harmonia entre a fé do povo e a fé dos líderes. Basta perceber a complacência em forma de simpatia que os nossos líderes têm pelo aborto, pelo casamento homossexual e por toda sorte de contrariedades à moral do povo. Mutatis mutandis, se houvessem bruxas hoje -- yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay --, elas seriam amplamente defendidas pelos líderes políticos e, qualquer atentado contra as suas práticas religiosas, como o aborto ritualístico, seria penalizado com o rigor da lei. A linguagem favorável às bruxas, portanto, seria a do politicamente correto.
No livro A Verdadeira História da Inquisição, o autor, Rino Camilleri, jornalista e cientista político italiano, conta que, durante a Idade Média, muito diferentemente do que a narrativa "moderna" propaga, havia, sim, pessoas, sobretudo mulheres, que praticavam antigas religiões pagãs -- isso num contexto histórico no qual a completa cristianização da Europa ainda não se efetivara --, nas quais o sacrifício de recém-nascidos era parte integrante dos rituais macabros. Camilleri diz ainda que, se não fosse através da intervenção direta dos membros do clero local, como padres, monges e freiras, tais pessoas, sob a acusação do assassinato de bebês, seriam trucidadas, linchadas, condenadas sumariamente pelos aldeões revoltados. Fora, portanto, a intervenção direta da Igreja que, aplicando os princípios do Direito, salvara muitas dessas pagãs de uma condenação sem julgamento, injusta. Robert Eggers, em seu filme, soube retratar com uma quase perfeição a realidade do choque entre cristãos protestantes, que não estavam sob a direção do Direito Canônico da Igreja Católica, e os elementos contrários à sua fé. O grande mérito de Eggers fora o de ter desenvolvido a sua narrativa a partir de um enfoque psicológico.
Thomasin, a filha mais velha do casal, sobre quem recaem as acusações de bruxaria, se vê vítima de uma complexa trama na qual a constante pressão psicológica no ambiente familiar, somadas, sim, a acontecimentos estranhos, preparam o caminho para o afastamento definitivo da garota de tudo aquilo que lhe é caro. Cansada da permanente repressão, ela, numa reação desesperada, revela o quão hipócrita seu pai é, e, contra sua mãe, Thomasin vai até às últimas consequências de um confronto aniquilador. O diabo, sob a forma de um bode negro, que as crianças dos contos populares da Nova Inglaterra chamavam de "Black Phillip", obteve sucesso com o seu plano: conseguiu atrair e tomar Thomasin para si através das brechas morais de uma família escrava da hipocrisia e refém dos seus próprios pecados. Black Phillip oferece à garota uma vida futura de luxúria e de prazeres indescritíveis. É irresistível, porque, afinal, o que ela tinha antes? Uma vida miserável na qual o medo constante da condenação eterna era o seu alimento diário e a impossibilidade prática da redenção, da ascese espiritual a torturava permanentemente. A pobre família não conseguia vislumbrar nada que estivesse para além dos seus próprios pecados, confirmando, assim, as palavras de Nietzsche em "Para Além do Bem e do Mal": "Aquele que luta contra monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". A cena final do filme é um coroamento estético deslumbrante.