quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

 

Alice se despede


   Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seus galhos, muitas gerações de crianças brincaram, cresceram e tiveram seus filhos. 

    Alice talvez tenha se perguntado se uma das suas sementes encontrou um lugar adequado para deitar raízes e crescer. A única coisa de que podia ter certeza era que, se as suas não vingaram, outras o fizeram, e desse modo o ciclo natural continuaria. Há alguns anos, a casca de Alice começou a endurecer e uma doença causada pela umidade infestou a parte interna do seu casco. Alice sabia que era hora de se despedir, e assim, certa manhã de outono, ela teve uma vaga consciência do talho regular de um machado em sua base. Não sentiu dor nem tristeza: tinha feito tudo o que se esperara dela. 

    Muito mais, até. 

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Índias peladas e marujos afoitos?

 



    Mordido por uma curiosidade irresistível decidi, depois de só indiretamente conhecer o seu conteúdo durante as aulas do ensino fundamental, ler a Carta de Pero Vaz de Caminha. Surpreendi-me tocado, emocionado com a narrativa. Para mim, enquanto leitor, Caminha apresentou-se muito diferente daquele fidalgo arrogante e malicioso cuja imagem deve-se à sanha brega dos justiceiros sociais. Coisa brega. Coisa ridícula. O leitor que se contenta somente com a leitura indireta, com a experiência secundária da realidade, jamais terá acesso a todas as possibilidades de percepção que a sua própria experiência oferece. 

    Eu sou católico, sei o que é necessário para comungar, para participar da partilha do Corpo de Christo na missa. Durante a curta estadia daquele primeiro grupo de heróis portugueses na Terra de Vera Cruz, segundo Caminha, celebrou-se missa; era tempo de Páscoa. No Dia do Senhor de 26 de abril de 1500, Frei Henrique de Coimbra, com "voz entoada", cumpriu o rito latino e, depois da celebração, "desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho (...)". Caminha conta que, terminada a exposição sobre o Evangelho, Frei Henrique falou sobre a viagem, sobre o propósito primeiro desta expedição que levara homens piedosos para tão longe de casa. 

    Sim, piedosos. É verdade que a quase totalidade dos discursos proferidos na mídia, nas universidades, pelas classes "artísticas" e formadoras de opinião, não admite que uma coisa denominada pelos católicos de "estado de graça" exista. É puro fanatismo religioso que deveria ter sido extirpado da face da Terra quando da Revolução que, aliás, fora celebrada ontem, 14 de julho. A narrativa de Caminha fala de esperança. Plenamente consciente da missão que o imperativo "ide e pregai o Evangelho a todas as criaturas" implica, o nosso primeiro escritor legou, nesta sua pequena obra de sete páginas endereçada a El-Rei Dom Manuel, a imagem do Brasil tal qual idealizado pela própria Vontade Divina

terça-feira, 9 de março de 2021

O que é um Santo?




    Depois de muito esperar na fila de leituras, eis que é chegado o momento de lê-la. A biografia Padre Pio, A História Definitiva, escrita pelo C. Bernard Ruffin, da Minha Biblioteca Católica, chegou há meses. Lembro bem da surpresa daquele dia: o carteiro trouxera duas caixas com os emblemas da MBC. A pulga atrás da orelha não só dançou, mas pulou carnaval, na mais soberba das folias. Como pode? Eu paguei por um kit e, no entanto, chegam-me dois! Corri para o computador e enviei um e-mail relatando o possível engano da equipe responsável pelos envios mensais dos livros aos assinantes. "Vitor, considere o livro excedente como um brinde do nosso Clube de Leitura!", fora a resposta da prestimosa equipe. Pois bem, sou um felizardo, pois tenho dois exemplares da mais completa biografia do maior Santo que viveu no século XX! Talvez eu dê o outro de presente para alguém, estou prospectando dentre os conhecidos, de longe e de perto, virtuais ou pessoais, alguém digno de receber esse tesouro. Quem será? Há uma amiga virtual residente na longínqua Cascavel do Paraná, talvez o carteiro despache alegria em sua casa também. 

    Decidi escrever algumas poucas palavras sobre o meu entendimento da realidade da Santidade depois que, durante a leitura, pude observar, quase como uma testemunha, a coleção deífica das ações cotidianas do Pe. Pio. Um Santo, mes amis, é alguém que esteve tão próximo de Jesus Christo a ponto de se transformar em um verdadeiro e cativante exemplo de como segui-Lo, imita-Lo e obedecê-Lo. Esse tipo humano especial, pelo testemunho de sua vida de consagração e entrega, parece mesmo dotado de um amor extraordinário por Jesus; um amor que não poderia tomar forma sem uma intervenção divina. Francesco Forgione, o Pe. Pio de Pietrelcina, da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, foi um, mutatis mutandis, exemplo perfeito de Santidade. Na história das personalidades humanas, observamos, maravilhados, que há aqueles que nascem com o talento extraordinário para as habilidades matemáticas, como Newton ou Feynman; outros, porém, como prodígios musicais admiráveis, como Bach ou Mozart; e ainda outros nascem com o talento incomum para a arte da Literatura, como Machado ou Dostoiévski. Contudo, há um outro tipo de disposição manifesta em alguns indivíduos que os arrebata, literalmente, do ordinário: a Santidade. Pe. Pio fora um desses iluminados pela chama do amor desmedido a Deus que o levou a, heroicamente, aprender a submeter suas paixões à vontade do Criador. E, assim como os talentos mundanos precisam ser lapidados e aprimorados, como um diamante, assim também a Santidade demanda o esforço individual para crescer. 

    Entretanto, diferentemente dos talentos comuns, isto é, daqueles que expandem o horizonte de percepção do indivíduo somente para as coisas mundanas, apontando só timidamente para a existência de uma realidade muito para além do mensurável, a Santidade é um talento que se distribui de forma igualitária. Os outros, não. Um sujeito pode ser bom em matemática, um outro, em música, mas esses talentos limitam-se ao domínio de recortes da realidade. Ademais, limitam-se também às potências intelectivas dos indivíduos. A Santidade, por sua vez, expressa o vocativo universal: a conformidade da alma em Christo; a participação definitiva no Ser. Desse chamado [vocare] ninguém pode escapar -- pelo menos de ouvir. Os Santos, através da coparticipação com a Graça Divina, manifestaram uma firme resolução de dedicar suas vidas nesse mundo àquilo que verdadeiramente importa: ir a Christo e nEle permanecer. Nas suas ações cotidianas, Pe. Pio deixava-se guiar unicamente por esse propósito, tudo o mais em sua vida era contingente. Há aqueles que, conscientes do chamado à Santidade, caem tristes, porque sempre e sempre sucumbem às tentações. Numa carta a um Padre amigo, datada de março de 1918, Pe. Pio diz: "(...) Caminhe alegremente com um coração aberto e sincero na medida do possível. Se não puder manter essa santa alegria, ao menos nunca perca a coragem e a confiança em Deus. Diga frequentemente a Nosso Senhor, junto ao Santo Rei Davi: 'Sou teu, salva-me' (Sl. 118,94), e, como Maria Magdalena, em pé diante dEle: 'Rabi, meu Mestre!' (Jo. 20,16). Então deixe tudo em suas mãos. Com você, dentro de você, ao redor de você, e mesmo através de você, Ele santificará Seu nome, ao qual deve ser dado honra e glória eterna. Nada tema... e não tema nada que possa separá-lo de Deus. Não desfaleça por causa da escuridão em que seu espírito se encontra na maior parte do tempo. Lembre-se que Jesus está sempre muito próximo, não importa qual seja o estado da sua alma". 

domingo, 31 de janeiro de 2021

Sob a máscara -- Crônica.

 

    
    Cheguei à estação, comprei o bilhete, venci a catraca, subi e desci dois lances de escadas e tomei o meu lugar na plataforma. Não houve demora. Num movimento rápido de cabeça, vejo chegar o comboio vermelho da CPTM. Só não entrei rapidamente, como faria por instinto, porque cedi espaço a uma senhora que se avizinhou de mim no momento exato em que o trem abria suas portas. "Opá!, pode passar, senhora!". Como fosse uma tarde de domingo, não houve concorrência para tomar os assentos. Sentei-me desconfortavelmente num daqueles bancos ordinários da Companhia Paulista, mas, repare, não digo isso pelo puro prazer da queixa, como as pessoas fazem comumente, é que tenho proporções físicas incomuns -- se minha patela falasse, não haveria dicionarista capaz de catalogar-lhe os impropérios. Depois de desviar a mente dessa pequena injustiça dominical, olhei através da janela (permanentemente hermética) e passei a contemplar o pôr-do-sol. Seguia do subúrbio para o centro, nesse domingo eu iria comungar na

    Passaram-se duas estações até que uma moça bonita veio sentar-se ao meu lado: tinha olhos verdes-mel-com-limão, cabelos castanho-claros e um longo pescoço; usava uma camisa social e uma calça preta de tecido leve. Estava, portanto, decentemente vestida para o meu crivo de modéstia, mais hesitante do que exigente. Talvez por ser dia santo e eu estar a caminho de cumprir o preceito, tentei ignorá-la instintivamente, como se tivesse receio de ter de acrescentar mais uma violação ao IX Mandamento. Distraí-me com as publicações da minha rede social, especialmente com uma que ironizava a implicância que algumas pessoas fazem àquelas que vivem com a cara pregada na tela do celular: uma foto tirada do interior de um bonde na São Paulo dos anos 1920 mostrava todos os passageiros com a cara pregada no... jornal! A diferença está no fato de que os celulares são mais práticos, porque são compactos, não preenchem todo o espaço à frente do leitor como as imensas folhas brancas dos jornais de outrora que, além de incomodarem pelo tamanho, irritavam também pelo farfalhar das páginas quando viradas. Pois bem, a moça ao meu lado não estava olhando para o celular, ela tinha mais interesse no pôr-do-sol através da minha janela. 

    No ônibus, no trem ou no metrô é mais fácil observar com naturalidade as moças que estão ligeiramente distantes porque, se os olhares se entrecruzarem, basta um desvio rápido para um ponto qualquer, menos interessante e perigoso. E quando, por fatalidade, acontece um encontro de olhares, um estranho e visceral reflexo de afastamento é desencadeado, como quando o sujeito aproxima o dedo da chama de uma vela ou quando, por puro divertimento, acende um palito de fósforo e espera que as chamas consumam toda a extensão da pequena peça de madeira, até fazer cócegas nos dedos. Dor e constrangimento. Penso que se um estrangeiro, olheiro de alguma agência de moda, viesse à Pindorama com o propósito de aliciar as beldades do seu gosto, ele não teria grande dificuldade em encontrá-las: bastaria se locomover de condução. Numa simples e rápida viagem até o centro da cidade, o passageiro tem uma mostra de praticamente todos os tipos e biótipos característicos da sociedade. Eu tinha certeza de que a moça ao meu lado era uma dessas beldades, mas eu não me atreveria a olhá-la mais, era impossível. 

    Seguimos, então, sentados lado a lado, em nossa peregrinação do subúrbio para o centro. Os passageiros que nos faziam companhia estavam todos perscrutando as telas dos seus celulares, exceto a senhora que recebera minha gentileza ao embarcar, a idosa mantinha os olhos em qualquer ponto vago do piso do trem à sua volta, ou em qualquer movimento interessante que surgia através da janela. Pude observar que trazia um rosário em torno do pulso, talvez estivesse a caminho da missa também. Antes de chegarmos à estação Barra Funda, que, com o perdão do trocadilho tão fácil, deixa de ser uma barafunda aos domingos, ouço um abafado "moço, por favor, que horas são?" em voz de mulher. Era ela, a donzela ao meu lado desejava saber a quantas andava o deus Hélio através do seu percurso pela abóbada celeste. Ele ia adiantado, pois já era quase noite. Sua pergunta me causou estranheza, ela quebrou a atmosfera de silêncio do ambiente, eu esperava ver o seu rosto, mas não ouvir a sua voz. "Quinze para as sete", respondi sorrindo. A moça não carregava um celular. Tão estranho quanto ouvir sua pergunta e me ver, assim, transformado num participante indireto das suas cogitações, foi perceber que a moça não pôde ver meu sorriso quando respondi. De alguma forma imprecisa, isso me perturbou. Três minutos depois, chegávamos à estação Barra Funda. "(...) Ao desembarcar, cuidado com o vão entre o trem e a plataforma". Levantamos, demos alguns passos; abriu-se a porta, desembarcamos. Ela ia à minha frente. Antes de subirmos as escadas, porém, eu parei, tive um pensamento súbito, do tipo mesmo que faz um homem parar, estancar: "Ela não me viu sorrir", pensei, em devaneio, "mas... também não a vi sorrir, não sei... talvez ela tenha sorrido quando respondi". 

    Acho que permaneci nesse estado de devaneio por um longo tempo, porque, próximo a mim, encostada na amurada da estação, aquela senhora que se beneficiara de minha gentileza quando de seu embarque, há meia hora atrás, me olhava com curiosidade e algo mais. Notei que a região em torno dos seus olhos franzia-se ligeiramente, assim como sua testa; e suas orelhas faziam um movimento engraçado, assim como seu abdomen. A velha não estava rindo, mas gargalhando de mim, divertindo-se soberbamente com a minha situação. Dei de ombros. Não tinha como saber com certeza, todos nós usávamos máscaras. 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Por que você escreve?

 


    É fácil encontrar e, como diria minha avó, se aprochegar de quem nutre os mesmos gostos que você. Hoje, com a onipresença da internet na vida cotidiana, estabelecer contato e quiçá amizade com quem partilha das mesmas preferências que você é uma vantagem civilizacional tremenda. Se nós, humildes e ingênuos usuários da rede mundial de computadores, faremos uso deste meio por muito mais tempo, é uma questão que não cabe aqui. Vamos levando a vida dentro dos exatos limites das possibilidades como, aliás, sempre fizemos -- conformados ou a contragosto. Assim, no meu simples cotidiano de estudante autodidata, leitor e acumulador voraz de livros, facilmente descubro novos colegas amantes de literatura. Eles escrevem, mantêm blogs, sites, revistas eletrônicas, redes sociais, etc., no entanto, para meu desgosto -- porque gosto de conservar aquilo que amo --, raramente escrevem bem. Geralmente, esses bibliófilos das internets só estão preocupados mesmo com a exibição das suas estantes apinhadas de livros (nunca lidos) nas redes sociais. Quando falo em escrever bem, quero dizer simplesmente que eles não têm a genuína preocupação em exprimir, da melhor forma possível, suas experiências com a realidade; não sentem o peso da necessidade de dizer, de dar uma forma verbal às suas experiências reais. Para estes, a literatura não passa de um passatempo, uma diversão frugal que exige algum esforço da mente, mas que, no final, não tem valor substantivo para a vida, como o jogo de xadrez. 

    Escrever, como incansavelmente ensinam os grandes mestres, exige não só disciplina, mas coragem também; exige que o escritor não se permita ser dominado pelo arrefecimento do espírito, pela acídia que leva à mediocridade, à superficialidade, à prostituição da consciência, à conformidade com as narrativas ideológicas deste ou daquele grupinho. É curioso notar como as pessoas estão cada vez mais institucionalizadas hoje em dia: para empreender uma investigação, seja no âmbito intelectual, como nas ciências humanas e exatas, seja no âmbito prático, como nas matérias jornalísticas, só tem valor objetivo para o grande público os trabalhos realizados por quem tenha diploma referendado por tal ou qual instituição. O simples esforço individual da inteligência para entender a realidade não vale se não estiver sob as diretrizes de alguma instituição que forneça, mediante o diploma, o crivo através do qual se possa analisar todas as coisas. Pergunta-se: Machado de Assis tinha diploma universitário? William Faulkner gradou-se em qual universidade? Ray Bradbury exibia aos amigos suas fotos usando beca, faixa e capelo? Charles Dickens mantinha uma moldura em cima da lareira ostentando o seu título de Doutor? Lima Barreto fora renomado Bacharel? Quando a sociedade passa a superestimar os títulos, os diplomas, as cartas de comprovação da passagem pelo campus universitário ao invés de reconhecer o real valor do trabalho intelectual genuíno, vocacionado, desinteressado, toma como verdade universal a visão da realidade sepultada pela atmosfera da burocracia institucional. "Afinal, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?". As implicações disto são tenebrosas, não? 

sábado, 23 de janeiro de 2021

Falai palavrões!

 


    É necessário, às vezes, ser rude, no sentido mesmo de ríspido, no entanto, essa necessidade quase cotidiana só existe para um tipo especial de pessoa que, mui desgraçadamente, está cada vez mais abundante no mundo: o idiota. O idiota é aquele sujeito cuja energia máxima da existência é empregada unicamente em vislumbrar o seu próprio umbigo, limpá-lo com aqueles protetores auriculares -- que para ele deveriam ser umbigulares -- embebidos em substância higiênica, lustrá-lo, enfiar-lhe o dedo indicador até que a articulação distal desapareça no tecido adiposo do abdomen. Eliminar as crostas negras de sujeira acumuladas nessa icônica região anatômica é, portanto, a única atividade digna de concentrar toda a atenção verdadeira do idiota contumaz. Nenhum pingo de energia para a prática do amor ao próximo, nenhum interesse em fazer o bem para quem quer que seja, nenhum reflexo de atenção verdadeira para com o outro. Nada. Todo o universo está, para o idiota, circunscrito pelos limites anatômicos do seu fabuloso umbigo. "Oh, Umbigo divino! Oh, Umbigo ditoso! Oh, Umbigo perfeito! Tu és o centro de todo o universo! Para Ti convergem todas as massas, Tu as atrai todas para Si e nem aqueles que cavalgam os raios de luz, a 299.792.458 m/s podem escapar-Te a atração. Tu és incomparável, oh, Umbigo deífico!". O idiota, quando medita sobre os mistérios da vida, tem pensamentos desta natureza. 

    Daí que toda sorte de palavras malcriadas, de vocábulos torpes, imorais, vulgares, diabolicamente articulados em explosões de perdigotos, lhe sejam destinadas. É satisfatório. Se é belo e moral também, não me interessa, só sei, nesse momento, que é satisfatório, sumamente satisfatório. É como ter o vigor físico para dominar, sozinho, uma mangueira de bombeiro cujo hidrante é o seu próprio corpo e a substância que lhe sai, descrevendo esguichos magníficos, ser suficiente para lavar, por inteiro, o Maracanã. Não só, mas a Quinta da Boa Vista também. Sim! Você seria capaz de apagar o incêndio que destruiu o palácio de São Cristóvão com a sua extraordinária mangueira! Claro, isso se tivesses a habilidade de manuseá-la com perícia. As conjecturas sobre a natureza da substância esguichada do seu próprio corpo são desnecessárias, pois já temos aqui um quadro demasiadamente burlesco. Imagine que é água, pronto, assim como a água do aqua lateris Christi, embora, como é sabido, qualquer substância viscosa, quiçá branca-amarelada, composta por enzimas, ácido cítrico e até por bichinhos microscópicos, também seja, dependendo da abundância, eficiente para apagar um incêndio -- a chama de uma vela, pelo menos. Só não tão indecente quanto quando o idiota, insatisfeito em movimentar a falange do seu indicador pelas paredes rugosas da estrutura interna do seu umbigo, o leva à língua, com o propósito de dar uma dimensão também palatável ao seu espetáculo picaresco. 

    Ah, idiota, o que faríamos sem você? Será que o mundo seria melhor se algumas pessoas subitamente decidissem parar de se meter na vida alheia? Será que a vida no planeta ou redondeta Terra -- como preferir -- seria melhor se algumas pessoas decidissem estudar antes de dar soberbamente suas opiniões? Será que haveria algum impacto positivo na vida ordinária do cotidiano se alguns bípedes passassem a usar a dupla de orifícios auriculares com maior frequência do que o grande orifício delimitado pela mucosa de tonalidade avermelhada através da qual recebem o alimento diário -- ou semanal, para as pobres vítimas de algum regime comunista por aí? Será? Eu leio a Bíblia, já a li algumas vezes e sempre, sempre a estou relendo. Há um trecho, uma passagem que, sempre que me flagro pensando na fatalidade dos idiotas, me vem à mente: é aquela na qual Nosso Senhor Jesus Christo, enrolando tiras de cordas nas mãos, desfere lambadas ardidas nos lombos dos vendilhões, dos cambistas que estavam fazendo do ambiente sagrado do templo uma verdadeira feira do rolo. O contexto, isto é, as partes que vêm antes e depois do texto aqui citado por mim, está todo lá, você pode conferir lendo o Evangelho segundo São João, capítulo II, a partir do versículo 13. Imaginar o Verbo Encarnado, furioso, esbravejando com um chicote na mão enquanto, a pontapés, virava mesas e, literalmente, chutava o pau da barraca, é maravilhoso! Os vagabundos dos marreteiros eram mesmo uns completos idiotas, porque profanaram o templo ao invés de prestarem culto ao Senhor. Parvos! 

    De que modo um idiota pode ser curado de sua idiotice? A resposta é muito complexa, porque, embasado nas minhas observações, constatei que quanto mais idiota um sujeito é, menos percebe sua idiotice. Ele, portanto, só pode ser salvo através do brilho de um centelha de inteligência que, por milagre, ainda possa bruxulear dentro de si. Um método eficiente para verificar essa possibilidade é, quando pego no flagrante de alguma de suas idiotices, gritar-se-lhe palavrões, de preferência ao pé do ouvido, de modo a provocar um despertamento no infeliz. Um choque de realidade. Agora, se os palavreados não surtirem efeito, você pode fazer como Nosso Senhor, e sentar-lhe a chibata no lombo. Mas, como aqui não quero insinuar atos de violência [física], limite-se mesmo aos justos impropérios. Talvez haja esperança para o ouvinte. Talvez. 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Resenha do filme A BRUXA -- 2015 --, de Robert Eggers.

 



    Perverter a imagem de Deus, eis a mais ardilosa das artimanhas do diabo. Fazê-Lo parecer cruel em seus julgamentos e injusto em suas sentenças; mostrá-Lo desde um obscuro quadro de indiferença e frieza para com os sofrimentos humanos; transformá-Lo num juiz cruel, pervertendo assim sua intrínseca bondade, eis os intentos do adversário de todas as almas. Deus não é um pai misericordioso e amável, Ele é injusto, porque depositou sobre as costas dos homens um jugo demasiado pesado para ser suportado. Tudo o que os seus filhos podem fazer é levar a vida na incerteza da salvação das suas próprias almas desesperadas. Tal realidade é a tônica da narrativa do diretor americano Robert Eggers no seu filme A Bruxa, "The Witch", estreado em 2015. O longa-metragem traz o subtítulo de "A New England Folktale", "Um Conto Popular da Nova Inglaterra". Da velha Inglaterra vieram os "Pilgrims Fathers" trazendo nos velhos baús de madeira a Geneva Bible de William Whittingham e a esperança de conquistar a Terra Prometida, a "terra que mana leite e mel". 

    O filme de Eggers é um verdadeiro estudo psicológico em moldes estéticos da mentalidade daqueles peregrinos que sobreviveram às primeiras noites da América. Com o entusiasmo para conquistar o new world traziam também uma nova cosmovisão da realidade: a mentalidade protestante dos puritanos. Estes, que se afastaram da Igreja Católica e dos ritos pseudo católicos dos anglicanos, mantinham bem próximo de si a interpretação calvinista do mundo: a doutrina da Predestinação. Deus, em sua infinita bondade, determinou de antemão o destino de todas as almas, de modo que, como sinal de sua salvação eterna, o indivíduo recebe bênçãos em vida; e tais bênçãos vêm, quase sempre, na forma de prosperidade material através da predisposição para o trabalho diligente. As bênçãos e as maldições na vida são, portanto, manifestações claras da Graça de Deus sobre os filhos da salvação ou da danação eternas.     

    Mas e quando o trabalho, mesmo diligente, não dá resultados favoráveis? A história é centrada na narrativa da vida de uma família de puritanos imigrada da Inglaterra para a costa leste da América do Norte. Pai, mãe e filhos vivem agora como membros de uma comunidade puritana na qual os rígidos preceitos morais têm o peso da coerção da lei e a não observância do comportamento irrepreensível perante Deus e os homens é passível de excomunhão. Um dia, porém, o patriarca da família, homem de caráter questionador e rebelde, é levado a julgamento perante os legisladores da moral do povo da pequena comunidade. Por motivos de "consciência" o homem se rebela contra o status quo da administração religiosa da comunidade e, por isso, na companhia de sua família, é convidado a abandonar a vida na vila e a tomar o rumo do mundo desconhecido, para além da proteção dos muros daquela sociedade controlada e controladora. O convite é aceito "com prazer".     

    Encontraram uma região favorável, fronteiriça a uma floresta, e começaram então os esforços para o estabelecimento da nova vida. Nesse campo, a família começa a construir uma pequena fazenda e, em função da diligência no trabalho, alcançam relativa estabilidade. Cultivam uma pequena lavoura de milho, uma horta; criam animais que dão leite e chegam aos estágios finais da construção de um pequeno celeiro. A moradia principal é simples e rústica, mas, em pouco tempo, ingressam numa fase de estabilidade que, a julgar pela dedicação que todos empregam na labuta cotidiana, cada um cumprindo com as suas funções, a renda da fazenda só tende a aumentar, a expandir. No entanto, a fé da família é posta à prova quando os frutos do trabalho não mais são viçosos e a bondade divina parece ter cessado. Aquela que seria a primeira colheita da lavoura de milho e que inauguraria uma nova fase na vida familiar longe da comunidade puritana, revela-se um tremendo fracasso, pois os milhos saem bichados e, para dar força ao momento dramático, o filho mais jovem, um bebê gordinho, desaparece quando estava sob os cuidados da filha mais velha. 


    O patriarca que, na Inglaterra, fora agricultor, não sabe caçar, por isso aqueles que estão sob os seus cuidados dependem exclusivamente dos rendimentos da lavoura para sobreviver. Há uma cena na qual o pai leva o filho homem mais velho para ajudá-lo a preparar armadilhas na floresta, eles esperam capturar algum animal. Pai e filho vão à contragosto da matriarca, pois ela, sob efeito de uma inquietação, de um afligimento, de uma angústia constante, proibira a todos de entrar na floresta. Pois fora para as entranhas daquele ermo que seu bebê fora levado -- não se sabe ao certo por quem ou pelo quê. Nessa cena há um diálogo crucial para o entendimento da mensagem do filme. Enquanto caminham lado a lado, o filho recita máximas decoradas dos preceitos religiosos que aprendera com o pai; o velho indica um princípio puritano, um tema, uma premissa e pede para que o filho o recite. O menino revela diligência não só para o trabalho duro, mas também para a observância dos preceitos da religião que aprendera com os seus pais. As sentenças são reproduzidas exemplarmente de memória pelo filho toda vez que o pai o questiona. Até que, depois de caminharem floresta adentro, ambos chegam na primeira das armadilhas armadas pelo pai na esperança de capturar algum animal pequeno, como um coelho. Mas estava fazia, não pegaram nada. 

    Enquanto constata o fracasso, ajudando o pai a rearmar a engrenagem da arapuca, o menino pára e, parecendo emergir de uma profunda reflexão, começa a tecer perguntas ao pai, questionamentos sobre a realidade da danação eterna apregoados pela religião. O garoto pergunta se será salvo, se Thomasin -- sua irmã mais velha -- será salva, se o bebê, que desaparecera, e todos os outros irmãos terão seus lugares no Paraíso. O pai, puritano exemplar e, exatamente por isso, homem atormentado pela incerteza da salvação da sua própria alma, responde não saber, afirma que ama o filho e que é necessário ter fé em Deus. Uma evasiva. A perspectiva da misericórdia divina é cinza, é tão nublada e incerta quanto a paisagem outonal apresentada no filme. A visão de mundo da família não inclui a possibilidade da redenção e perdão dos pecados senão através de um permanente estado de contrição que, ao invés de conduzir o indivíduo para um estado de alegria, de júbilo em se saber perdoado, o afunda cada vez mais numa depressão. Para eles, é um esforço sobre-humano que, na prática da religião cotidiana, pode chamar a atenção de Deus. 

    As relações familiares subsistem sob uma tensão constante entre a cobrança, a fiscalização da moral alheia, e o esforço permanente para obter o perdão divino. No entanto, nada disso é efetivamente alcançado. Não há como reprimir as paixões da carne, o ímpeto pecaminoso para praticar o mal, nem em si, nem no próximo. Toda a aparente disciplina de uma vida austera é mera hipocrisia. O perdão efetivo só é alcançado mediante o exame da consciência e a confissão, o que exige, para esta, um mediador. No entanto, não há mediadores na cosmovisão religiosa da família vivendo na fronteira da floresta; eles próprios, como indivíduos, são os seus sacerdotes, são os responsáveis pela integral observância de todos os preceitos. Cada um é fiscal de si e do próximo. Entre o casal, há, por parte da mulher, uma cobrança ainda maior, porque, crendo que a prosperidade material é sinal da Graça de Deus, ela se desespera quando percebe que a família não tem mais condições de se manter naquele lugar. A comida está escasseando e, para piorar, coisas muito estranhas acontecem. Uma atmosfera de suspeita cresce em torno de Thomasin, sua família acredita que a garota é responsável pelo desaparecimento do bebê. A hipótese de um urso ou lobo é prontamente descartada, porque não há animais desse porte nas redondezas. 

    Na mentalidade ocidental da primeira metade do século XVII estava presente a compreensão de que haviam aqueles que, afastando-se de Deus, praticavam deliberadamente o mal. Era uma prática consciente, como uma manifestação clara da vontade do indivíduo mal em servi-lo. Tais pessoas entregavam-se ao serviço do maligno, cumpriam os seus desígnios, atendiam ao seu chamado, serviam aos seus propósitos. As cidades, as vilas, os condados, as estruturas urbanas que, naquela época, eram organizadas com as tecnologias disponíveis, com os meios materiais, políticos, culturais, econômicos e religiosos vigentes, eram ameaçadas pelos servos do diabo. A possibilidade de que houvesse alguém à espreita, rogando um sortilégio contra um ente de sua família, era real e combatida com os meios aceitáveis de uma época em que governantes e governados partilhavam do mesmo corpo de princípios e valores morais e religiosos. Isto, num comparativo com a nossa realidade contemporânea, soa estranho, porque não há mais harmonia entre a fé do povo e a fé dos líderes. Basta perceber a complacência em forma de simpatia que os nossos líderes têm pelo aborto, pelo casamento homossexual e por toda sorte de contrariedades à moral do povo. Mutatis mutandis, se houvessem bruxas hoje -- yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay --, elas seriam amplamente defendidas pelos líderes políticos e, qualquer atentado contra as suas práticas religiosas, como o aborto ritualístico, seria penalizado com o rigor da lei. A linguagem favorável às bruxas, portanto, seria a do politicamente correto. 

    No livro A Verdadeira História da Inquisição, o autor, Rino Camilleri, jornalista e cientista político italiano, conta que, durante a Idade Média, muito diferentemente do que a narrativa "moderna" propaga, havia, sim, pessoas, sobretudo mulheres, que praticavam antigas religiões pagãs -- isso num contexto histórico no qual a completa cristianização da Europa ainda não se efetivara --, nas quais o sacrifício de recém-nascidos era parte integrante dos rituais macabros. Camilleri diz ainda que, se não fosse através da intervenção direta dos membros do clero local, como padres, monges e freiras, tais pessoas, sob a acusação do assassinato de bebês, seriam trucidadas, linchadas, condenadas sumariamente pelos aldeões revoltados. Fora, portanto, a intervenção direta da Igreja que, aplicando os princípios do Direito, salvara muitas dessas pagãs de uma condenação sem julgamento, injusta. Robert Eggers, em seu filme, soube retratar com uma quase perfeição a realidade do choque entre cristãos protestantes, que não estavam sob a direção do Direito Canônico da Igreja Católica, e os elementos contrários à sua fé. O grande mérito de Eggers fora o de ter desenvolvido a sua narrativa a partir de um enfoque psicológico. 

    Thomasin, a filha mais velha do casal, sobre quem recaem as acusações de bruxaria, se vê vítima de uma complexa trama na qual a constante pressão psicológica no ambiente familiar, somadas, sim, a acontecimentos estranhos, preparam o caminho para o afastamento definitivo da garota de tudo aquilo que lhe é caro. Cansada da permanente repressão, ela, numa reação desesperada, revela o quão hipócrita seu pai é, e, contra sua mãe, Thomasin vai até às últimas consequências de um confronto aniquilador. O diabo, sob a forma de um bode negro, que as crianças dos contos populares da Nova Inglaterra chamavam de "Black Phillip", obteve sucesso com o seu plano: conseguiu atrair e tomar Thomasin para si através das brechas morais de uma família escrava da hipocrisia e refém dos seus próprios pecados. Black Phillip oferece à garota uma vida futura de luxúria e de prazeres indescritíveis. É irresistível, porque, afinal, o que ela tinha antes? Uma vida miserável na qual o medo constante da condenação eterna era o seu alimento diário e a impossibilidade prática da redenção, da ascese espiritual a torturava permanentemente. A pobre família não conseguia vislumbrar nada que estivesse para além dos seus próprios pecados, confirmando, assim, as palavras de Nietzsche em "Para Além do Bem e do Mal": "Aquele que luta contra monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". A cena final do filme é um coroamento estético deslumbrante. 


  Alice se despede    Cento e cinquenta e cinco verões se passaram no jardim de Woolsthorpe desde que Alice deixou cair sua maçã. Sob os seu...